sábado, 7 de janeiro de 2023

CURRAL ELEITORAL OU PAR DE BOTINAS?

 

A PESQUISA DE CÍCERO JAS NETO:

duas resenhas misturadas com algumas histórias

 

-------------------PRIMEIRA PARTE: O MESTRADO----------------------------

 



Aviso aos calouros: estas publicações no blog não servem de exemplo e muito menos de modelo para trabalho acadêmico estrito! Se quiserem, consulte duas dúzias de resenhas que publiquei ao longo da vida profissional. Ou falem com... SEVERINO, Antônio Joaquim.

Ora, trata-se aqui de um caso raro, quase excepcional, vez que conheço o Prof. Dr. Cícero JAS Neto há trinta e sete anos. Fomos colegas de equipe, na mesma faculdade, durante três décadas – o que nos incita a contar algumas anedotas boas para elucidar o trabalho de pesquisa e de publicação dos dois livros envolvidos, bem como para ilustrar o ritmo de trabalho dele, o estilo de vida e o sotaque potiguar que nunca perdeu de todo.

Permitam-me, portanto, situar rapidamente o concurso que o escolheu, as disciplinas que lecionávamos e as transformações da instituição onde trabalhamos por mais de três décadas. Em seguida, virá uma apresentação “apreciativa” da dissertação de mestrado e, depois, num próximo post, da tese de doutorado.

Se o que escrevo a seguir não fosse aceito para publicação em periódico rigoroso – e sem ginga – eu manteria as notas para nos orientar em uma entrevista, um vídeo, com o colega Cícero, em co-produção com Ed K. Dick. Como já passei da fase Lattes, faço isso e aquilo só pelo prazer intelectual, para não enferrujar, estimulado que sou pelo próprio colega potiguar, que anda trabalhando com muita dedicação, oito anos depois de se aposentar. Eita!

1.       O concurso e o GEM

Em 1985, tive a honra de presidir uma banca de concurso para professor efetivo. Eu era professor no Departamento de Pedagogia – UFU, Uberlândia – desde 1979, e atuei nessa função extraordinária ao lado de Reginaldo Prandi e de Celso Favaretto; aquele participou da criação do Datafolha e o dirigiu, entre 1982 e 89, e este foi professor e pesquisador em instituições paulistas. Quem sugeriu os dois nomes ilustres foi nosso saudoso colega de equipe, Joaquim A. de A. Vilar, que tinha sido colega deles na capital.

Guardo ainda um caderno “brochura” pequeno, onde anotei os fichamentos da bibliografia indicada para o concurso, meses antes. Eu li (em geral reli) tudo que os três ou quatro candidatos teriam que conhecer, por suposto. Buscávamos alguém que pudesse reforçar a equipe de Metodologia Científica, tanto com formação acadêmica mais específica e afim, quanto com experiência em pesquisa empírica – pois boa parte de nossa equipe vinha de cursos para os quais bastavam habilidades e práticas “bibliográficas”, quando muito. E poucos de nós no grande departamento tínhamos pós-graduação, sendo que eu mesmo estava a redigir minha dissertação de mestrado, que defenderia no ano seguinte.

Cícero foi aprovado por pontuação e desempenho, pois já havia concluído duas graduações – direito e sociologia, na UFRN – e já era mestre desde o ano anterior, 1984, pela conceituada Unicamp. Na entrevista, ficou também claro que o candidato Cícero tinha planos claros e entusiasmados para “implantar grupos de excelência” de pesquisa científica, em nossa Universidade Federal, o que à época era uma novidade, uma expectativa, meros sete anos após a federalização.

Nunca me senti “responsável” pela aprovação do colega, na condição de banca, por princípio e pelos efeitos que logo se apresentaram: Cícero foi sempre um professor produtivo e empenhado, que, além dos encargos docentes regulares, dedicou-se naqueles anos todos a formar grupos de pesquisa. Deu o tom para boa parte de nosso programa nas disciplinas metodológicas e criou um laboratório para isso, o GEM – Grupo de Estudos Metodológicos. Muitos alunos e alunas, que em geral passavam pelas disciplinas de nossa equipe no primeiro ano de graduação, em várias áreas, permaneciam ligados à prática da pesquisa e ao mentor Cícero JAS Neto até o fim. Diversos dentre eles e elas seguiram carreira acadêmica, tornando-se professores e pesquisadores pelo Brasil afora. E adentro.

Um grande momento para o colega Cícero e os participantes do GEM era o evento anual da SBPC, referência máxima de ciência e cultura no Brasil, naquele bom período. Além desse grande congresso nacional, Cícero e seus jovens pesquisadores participavam de eventos de iniciação científica em outras universidades de referência, além daquelas agremiações por área, como ANPOCS e ANPUH, que aceitassem graduandos e mestrandos em suas mesas-redondas e sessões de pôsteres.

2.       Pedagogia se divide e surge o Departamento de Filosofia, na UFU

O Departamento de Pedagogia cresceu muito e as conversas – e desavenças – evoluíram para uma divisão, que deveria ser chamada de “redimensionamento”. Surgiriam dali dois novos departamentos, um de Fundamentos da Educação e outro, de Prática Pedagógica. Nós, da equipe de Metodologia, juntamente com os professores de Filosofia da Educação e de Introdução à Filosofia, aproveitamos a ocasião e... saímos também, para criar o Departamento de Filosofia.

Para alegria daqueles que acreditavam na conciliação da “Práxis” – ou através dela – os dois novos departamentos de pedagogia se juntaram de novo logo depois e deram um upgrade para formar a bem sucedida FACED. Desde então, com o naipe de Faculdade, logo viriam o mestrado, o doutorado, o curso de jornalismo.

A área da filosofia, dez anos depois daquele 1985, abriria sua graduação e, logo em seguida, também viria a oferecer mestrado e doutorado – sob o formato Instituto. Interessante lembrar que a revista Educação e Filosofia continuou servindo de veículo para publicações científico-acadêmicas para as duas áreas. É uma das mais bem sucedidas e estáveis revistas acadêmicas do Brasil, com inúmeros colaboradores e serviços.

Tive a honra de criar e fundar esse periódico, juntamente com Prof. Geraldo Inácio e alguns colegas, em 1986. Nós dois, ao lado de Cícero, Vilar, Reinaldo M. Fleury e demais colegas da equipe de Metodologia trouxemos para a revista importantes colaborações, enquanto editores, conselheiros editoriais, pareceristas e autores. E, para manter nosso “vulto” em evidência, logo veríamos ali publicados também os artigos de alunos e ex-alunos do Prof. Cícero.

Desde o início de suas atividades docentes, Cícero já refletia sobre o status do ensino da metodologia na UFU. Nos primeiros números da referida revista, lembro-me bem de dois artigos dele: um sobre o uso do gravador de fitas magnéticas para entrevistas em pesquisa social (história de vida) e outro que enfrentava com bom humor a tradução, por extenso, de uma das siglas para a disciplina que ministrávamos, em diversos cursos de graduação – “Muito tempo perdido?” referia-se a Métodos e Técnicas de Pesquisa, vulgo MTP.

3.       A fase depois do início do curso de filosofia

Não pretendo aqui me estender e nem criticar a política acadêmica de minha base, naquele período de transição. Assim que o Departamento de Filosofia passou a cuidar preferencialmente de seu próprio curso de graduação, as disciplinas da nossa área de metodologia passaram a ser menosprezadas e reduzidas, sob o novo rótulo de “disciplinas de serviço”. Como avisei, não vou aqui rebater nem o tom pejorativo, nem o equívoco; também porque temos que reconhecer que, com o tempo e a qualificação de professores em todos os departamentos e cursos, a pesquisa tornava-se mais e mais parte da rotina – além do efeito da progressiva implantação de programas de pós por todo lado, com a inevitável especificidade por áreas do saber, agora turbinadas por laboratórios, linhas de pesquisa e publicações de alto nível.  

Seja como for, Cícero e eu tivemos que nos impor no novo contexto: ele se acertou aos poucos no curso de Direito da UFU, com disciplinas e orientação, ao passo que eu assumi aulas no programa de filosofia, respaldado por minha graduação em linguística e ao jogar na mesa da coordenação meu mestrado e meu doutorado em andamento, ambos “em filosofia”.

Entretanto e além disso, Cícero participou de atividades da nossa área de Filosofia em bancas de TCC e mestrado. Ou seja, eu tinha razão – mas não reuni força “política” para brigar pela causa – ao querer integrar Cícero e suas linhas de interesse também dentro do nosso programa de pós em Filosofia. Poderíamos muito bem combinar sua “ciência política” com uma linha de pesquisa que eu esperava reforçar, no campo da filosofia política e da teoria crítica.

 

4.       A dissertação de Cícero: tema interessante e interesse metodológico

Ao inscrever-se naquele concurso em 1985, Cícero havia enviado à banca uma cópia de sua dissertação de mestrado, defendida no ano anterior. E eu mantive na memória boa parte do texto e da trama argumentativa. Me lembrava muito bem da seção tão agradável, nos anexos: transcrição de depoimentos de eleitores nascidos ao final do século XIX. E me lembrava de um detalhe muito especial, que comentarei adiante: uma certa “caderneta de morador” do Seridó.

Em meados do ano passado, 2022, fui visitar o colega Cícero, em sua casa, que fica a uns quatro quilômetros de onde eu moro, em Uberlândia. Gostei de revê-lo, rodeado de livros e caixas-arquivo em sua biblioteca, e com projetos editorias em andamento, arquivo do word na tela ligada. Eu trouxe de presente dois exemplares de sua lavra: a tese de doutorado de 2003 fora publicada em 2017 e, depois, na ordem inversa como sói acontecer, ele publicaria em 2021 aquela dissertação, defendida em 1984. Ambas saíram pela Editora Lumen Juris, do Rio de Janeiro.< www.lumenjuris.com.br>

O título é excelente, mas o tema “coronelismo” não aparece solto, de modo a insinuar generalizações, que tampouco serão alimentadas nestas resenhas mestiças com memórias. E, junto com o subtítulo, reforça-se desde a capa a impressão que será confirmada pela leitura atenta – o autor se preocupa constantemente com a metodologia, desde a delimitação até a interpretação profunda, porém contida.

Sim, estamos falando de “cercas” e de sinais gráficos também. Vejam só: O Seridó e os “votos de porteira batida”: um estudo monográfico sobre o coronelismo no Rio Grande do Norte. O Sertão do Seridó é uma região que atravessa a fronteira entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Diversos mapas deixarão claro esse recorte geográfico, resumindo-se ao lado potiguar (RN) dessa região geopolítica – com tantos e tais municípios, quilômetros quadrados, propriedades rurais e outras informações.

A expressão entre aspas é uma homenagem a uma certa tendência de pesquisa social – inclusive antropologia – que procura trazer da visão de mundo e do glossário dos próprios informantes (entrevistados, testemunhantes) as categorias de análise e de auto-compreensão. A expressão ocorrerá na página 135, dentro do depoimento do Coronel José Bezerra: “800 eleitores que tenho em Currais Novos são seus de porteira batida”. Aqui no Brasil central, utilizamos expressão semelhante, com a mesma origem de negócios agropecuários: entregar uma fazenda de “porteira fechada” significa deixar para o banco ou outro credor tudo: a terra, os animais, os implementos, os móveis da sede e, quem sabe, as dívidas. Assim também crescem os latifúndios.  

Tinha que dar nisso: um coronel da família Bezerra, na cidade de Currais Novos, que prendia seus “moradores” na base do cabresto, que talvez defina a contraditória virtude pública da lealdade. Essas práticas não são exclusividade do Brasil, claro, e há termos igualmente bem formados para isso, como é o caso do alemão Stimmvieh, que se traduz muito adequadamente por “curral eleitoral”; ao pé da letra seria “gado votante” ou coisa assim, para fazer pensar os fãs de Zé Ramalho. 

 

"ê eô vida de gado..."


              4.1 Como foi feita a pesquisa – justificativas e ressalvas

Essa dissertação de Cícero cai na boa tradição das trilogias: método, material, análise. O primeiro dos três capítulos – junto com a introdução que antecipa e cumpre funções semelhantes – toma um terço das páginas do livro, no formato atual, fora anexos. São cinquenta páginas para justificar: a escolha da região do Seridó, o emprego de entrevistas de um certo tipo – com algumas variações ad hoc – e os problemas práticos decorrentes da recusa de alguns informantes ou das condições para driblar o medo e a desconfiança de uns e outros.

Muito bem apanhada a dialética na condição de vida do oprimido que resiste, pois o medo tinha motivo e a liberdade era um impulso justificável: “eu não podia dizer nada da família maior de Serra Negra... esse povo matava gente” disse um informante, para, logo a seguir, acrescentar que, contudo, “era necessário falar”. (p.41)

Valiosa também aí é a defesa prévia da combinação de fontes de informação sobre votos e eleitores: como foi que Cícero associou os dados frescos das entrevistas que realizou a dados frios de arquivos, para que pudessem referendar e esclarecerem-se mutuamente. Por exemplo, um crime eleitoral entre famílias de facções políticas, citado em depoimento oral, pode ser confirmado em notícias de jornal e arquivos diversos.

Certa vez tive que formalizar, ou seja, me expressar em linguagem articulada, de forma discursiva, ao explicar o que seria abordagem. Creio que me convenci – e talvez tenha também ensinado algo aos alunos – de que esse item do jargão acadêmico dos anos oitenta incluía ao mesmo tempo um tipo de tema mais uma metodologia adequada e mais uma teoria complacente, coisas assim. Mas esse cluster ou essa “constelação” viria a ser mais adequada ainda para a formação de pesquisadores e críticos quando pudéssemos trazer também para o projeto de pesquisa a dinâmica da disputa de paradigmas. E aqui fala um fã declarado do livro de Thomas S. Kuhn.

Pois bem, Cícero enfrenta desde as primeiras páginas o espírito da “controvertibilidade” – inclusive na forma decadente dos fantasmas, com panelinhas e polêmicas imobilizantes. Ao ler o livro, criei logo um código local para anotar a lápis nas margens: Q / não Q, ou seja, a tendência teórica representada por Queiroz e os três ou quatro jogadores no time anti-Queiroz.  

Isaura Queiroz é apresentada por Cícero, de maneira gentil e precavida, como “expoente representativa de uma corrente interpretativa”. Não é fácil resumir aqui e não queremos que uma resenha romanceada dê spoilers, para usar a linguagem da mídia na era Netflix. Todavia, elogio o senso nato de retórica desse cabra treinado no cordel e diplomado para os fóruns legais, antes de mais nada. Refiro-me ao esperto artifício de gerar de saída um desequilíbrio na balança das “opiniões” que almejam se provar episteme. Ora, ao lado de uma corrente – que eu poderia melar aqui caso me apressasse a adjetivar como mainstream ou “uspiana” – nosso colega contrapõe com muita classe três ou quatro desafiantes, de pesos diversos: Leal, Faoro, Saes. O quarto elemento será, ao longo do relatório refletido da pesquisa, o próprio Soares Neto! Observação relevante: Décio A. M. Saes é o orientador da dissertação em apreço aqui.

Não vou, como já disse, traduzir de forma precária as posições em disputa, como não nos cabe aqui adotar uma das tantas definições e aplicações do termo básico “coronelismo”, usado e abusado em contextos nem sempre adequados. Todavia, provoco a curiosidade do futuro leitor ao dizer que certos modelos teóricos muito bonitinhos, simétricos, dão bons slides para palestras... com setas e vetores, mas não costumam resistir o impacto dos dados empíricos e dos fatos históricos.

Há também, no debate de Cícero com as posições em disputa, uma queda de braço entre as grandes rubricas: sociologia e antropologia. Não podemos - e Cícero é um exemplo dessa persistência à beira da pirraça – sacrificar ou dispensar a pesquisa para salvar um belo modelo teórico vazado em imagem Datashow. Não basta ao cientista social contentar-se, por exemplo, com “relações verticais” e “relações horizontais” na estrutura das trocas, etc. No limite, eu diria, caso fosse orientar um trabalho acadêmico: a antropologia cultural ou coisa que o valha não dará conta de tal tema! Mude o tema ou vá para outro curso... Mais ou menos como Marx foi grosseiro contra a inadequada Filosofia da miséria, digamos pra encerrar o parágrafo.  

 

Algodão Mocó no Seridó


4.    4.2  Onde, quando e como se dava aquele negócio do voto

No capítulo 2, que também ocupa outro terço do total de páginas do miolo do livro, Professor Cícero dá uma aula sobre como situar seu tema no tempo, no espaço geográfico e no arranjo social. O recuo histórico às sesmarias não se perde indefinidamente na sedução do passado; volta só até onde possa explicar esse aparente mistério: os latifundiários, que herdaram concessões de reis no período colonial, em seguida se juntaram aos militares no golpe que despachou o último imperador, para, em seguida explorar o trabalho do pobre – iludido por padres e reprimido por meganhas e bate-paus.

Os mapas e as tabelas ajudam o leitor a entender e, de fato, “visualizar” dimensões e proporções: imaginem uma fazenda de 25 mil hectares – duzentos e cinquenta quilômetros quadrados - nas mãos de uma mesma família-facção desde 1740... Isso ajudará a entender não só a concentração de terra e poder, mas também a necessidade de grandes contingentes de trabalhadores rurais, que dispunham basicamente de braços e enxadas para cultivar algodão.

Cícero explica muito bem as consequências do regime de meação. O meeiro seria hoje chamado de parceiro, pois a categoria de “morador” desfigurava a relação de exploração. Em resumo, o meeiro votava no candidato do fazendeiro – ou no próprio fazendeiro enquanto cacique político local – porque... morava nas terras dele: e o voto era tudo que o pobre tinha para dar (mas não exatamente “em troca”, como se vê no decorrer do texto).

Sim, o dinheiro mesmo não corria em abundancia no Seridó. O dono da terra providenciava um rancho singelo ou permitia que o meeiro erguesse um. E fornecia mantimentos e insumos durante o período de cultivo e colheita do algodão. E cada uma das partes ficava com a metade da produção de algodão inteiro. Aí o patrão, disfarçado de sócio descontava o valor adiantado no armazém... e, às vezes, nem cobria os custos, ficando para acertar na safra seguinte, etc. Mas não nos percamos em exceções e lamentos. Sucedia o seguinte, na “pós-colheita”: muitas vezes já se estabelecera antes que o meeiro venderia sua metade de sacas de algodão para o moinho do dono da terra que, claro, cobraria pelo serviço de arrancar o caroço.

Enfim, sem maiores detalhes aqui, foi importante ver as tabelas com as dimensões das 1912 propriedades, a distribuição de eleitores e votos, a pífia presença de implementos agrícolas, a falta de escolas, a falta de médicos. E os dados nos deixam ver mesmo que a produção de algodão era pequena, fraca. Alguns milhares de sacas que seguiam em lombo de burricos até os portos de Natal e Mossoró.  

Mas, podem ficar tranquilos quanto à “aplicação livre e ampla da inteligência” de Cícero sobre os dados que tinha em 1984 sobre sua mesa... Ele irá daquela base material, conforme relações de produção historicamente condicionadas, para a superestrutura – inclusive alguns “aparelhos ideológicos”, a que não se refere nesse jargão - e considera a análise, a auto-imagem, dos próprios entrevistados sobre valores, compromissos, gratificações e também os efeitos da violência efetiva, como fatores da manutenção de um arranjo político específico e que sofreria mudanças ao final da república velha.

 

 

4.      4.3 - Como o sistema eleitoral organizava e manipulava as eleições

O terceiro capítulo contém mais do que “análise dos resultados”, onde em geral o pesquisador vem checar os esperados diante dos obtidos.  Ali, Cícero avança para explicar os mecanismos diretamente ligados ao processo eleitoral e político. A sedução do eleitor – dentro dos princípios da lealdade e da orientação da igreja cooptada pelos ricos – não era bastante para eleger e, de preferência, perpetuar um coronel em cargos políticos; a manipulação se dava diretamente nos organismos e na legislação que realizavam eleições e garantiam candidaturas, ao mesmo tempo que impediam partidos de oposição e, no varejo, impediam o voto de eleitores rebeldes. Para tanto, as opções iam do alistamento – que podia excluir desafetos e rasgar títulos – à intimidação, por meio de policiais e jagunços, bem como aos extremos conhecidos de assassinar candidatos e eleitores que faziam oposição à oligarquia de uma localidade. E, além disso, sempre se recorria à fraude pura simples, com a caneta,  em listas de votação ou com a destruição de uma porção dos votos ou da urna inteira.

 

Uma resenha não mexe no que está pronto, mas se eu estivesse presente na banca ou pudesse ter dado palpite azedo na editoração..., sugeriria duas referências extra-científicas: uma, como epígrafe, retirada da extensa autobiografia do jornalista Sebastião Nery – “O Tribunal Eleitoral, pau mandado de todos os regimes políticos!” – e, à guisa de ilustração da fraude sistêmica das eleições no tempo do Onça, eu incluiria o romance de Mário Palmério, Vila dos Confins. 

Livro saiu em 1956


O papel da (falta de) escola era peça-chave para garantir os votos atrelados, pois assinar o nome era o bastante para isso. Segundo normas correntes, como mostra uma famosa caderneta de uma fazenda, o morador tinha que ser eleitor e para isso tinha que saber assinar o nome, embora não houvesse nenhuma escola pública nessa área do Seridó – que corresponde a um quinto do país Dinamarca ou dez por cento de Portugal.

Essa seção continua no teor da conclusão. E o ritmo é, felizmente, vertiginoso como nos filmes de Hitchcock: diversos arremates interpretativos e várias afirmações conclusivas e firmes se sucedem, sem reservas nem circunlóquios. Há uma dose de prazer no texto – para lembrar um título de Barthes – não só por vermos quem vencerá a queda de braço: Dona Isaura Queiroz ou Prof. Cícero?  Além dessa solução, o leitor verá em desfile outros termos redefinidos e colocados em perspectiva histórica: clientelismo, compra de votos, o surgimento do cabo eleitoral e um pouco mais, inclusive com uma ilustração centrada na figura de dois coronéis Bezerra – cada um no seu curral.

 

4.          4. 4 - “Aqui ninguém parado! Mesmo na hora da morte esteja estrebuchando.”

Desde que manuseei e li a dissertação de mestrado do colega Prof. Dr. Cícero JAS Neto, em 1985, fiquei com essa frase na cabeça. Agora, ao receber os dois exemplares sobre o mesmo tema do coronelismo, senti falta daquele incrível documento que tanto contribuiu para pintar um quadro das condições de vida no Seridó: a violência da dominação política e do “mandonismo” geral.

Graças a uma boa pesquisa no google, reencontrei em outra dissertação acadêmica a mesma caderneta para controle de moradores na Fazenda.

FRANCISCA LÚCIA DE MELO As práticas coronelistas na Região do Trairi ( 1945-1955) Monografia apresentada ao curso de História Bacharelado, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: Wicliffe de Andrade Costa. Natal/1995

http://www.edufrn.ufrn.br/bitstream/123456789/225/1/AS%20PR%C3%81TICAS%20CORONELISTAS%20NA%20REGI%C3%83O%20DO%20TRAIRI%20-%201945%201955.pdf

 






 

 

 

Um comentário:

Bento Itamar Borges disse...

Estou sabendo que o autor Cícero leu a resenha. E tenta comentar...