quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

CORONELISMO E FRAUDE ELEITORAL - segunda resenha de livro do Cícero JAS Neto






SEGUNDA PARTE: O DOUTORDAO 

  

A capa azul, com traços e cortes da típica xilogravura de cordel, não precisa trazer todas as delimitações do título original. Faltou o parâmetro temporal “1950”. Quem é do ramo sabe que uma boa tese diz o máximo sobre o mínimo. Por um lado, o título parece amplo e pretensioso – Coronelismo no Nordeste – ao passo que o subtítulo se refere justamente ao fim do dito coronelismo, em sentido estrito: o processo de ruptura do voto de cabresto no curral eleitoral. 

O que faltou na bem bolada arte da capa? Apenas a data, o ano 1950, ao lado do endereço “Seridó Potiguar”. Ano importantíssimo para as reformas na legislação para o sistema eleitoral.

Ora, o valor da tese de doutorado do Prof. Dr. Cícero JAS Neto – e, de certa forma, também a demora em publicá-la – decorre também de uma dupla ruptura, sendo uma relatada e justificada pelos dados históricos e a outra, praticada e sustentada pelo próprio colega pesquisador. Ou seja, antecipando um palpite: Cícero mostra como e quando acabou a mamata do coronel manipulador de votos em seu curral eleitoral e, com isso, ao mesmo tempo, desbanca uma teoria equivocada e superada pela disputa de paradigmas na sociologia eleitoral, conforme improvisei em minhas anotações no papel do livro: o fator Q.

Trata-se mais de intensidade e enfoque que de extensão do texto. Entre a dissertação de mestrado, defendida em 1984, e esta tese de doutorado, com banca em 2003, não se nota um aumento de páginas impressas, pois são duas centenas em cada obra, e nem cresceu a proporção reservada para listar as referências bibliográficas, em torno de vinte páginas, para cada qual. Mas, é claro que os livros são outros, com poucas repetições. 

Para deixar mais claro: só um quarto das duzentas fontes bibliográficas se manteve do mestrado para o doutorado, ou seja, houve uma significativa ampliação, com inovação. E isso é mais relevante, quando notamos que há no livro anterior cinquenta artigos de jornal de um mesmo J. L. Faria, que publicou entre 1903 e 1955, ou seja, o elenco de autores citados cresceu exponencialmente de um degrau a outro, no regime da pós-graduação de Cícero.  

Estas são velhas curiosidades de quem tinha lá suas manias e estratégias ao ler artigos e TCCs. A tese mantém apenas um dos dois livros de Marx da primeira lista; aparecem agora Mauss e Max Weber – “ensaio sobre a dádiva” e “los tipos de dominación”, respectivamente. 

A tese de Cícero cita seu próprio mestrado e um artigo de seu orientador Saes. Todavia, um pouco fora do ritual, não cita nenhum escrito de seu orientador na UnB, Elimar P. do Nascimento, o qual, aliás, só empregou mais uma vez o termo “coronelismo” em sua extensa seção de orientandos, no Lattes, bem como em inúmeras publicações.

Na resenha que acabo de publicar neste blog, post anterior, me lembrei do romance de Mário Palmério, que não aparece lá. Mas, comemoro aqui a referência a Vila dos Confins – que aprecio e avalio a meu modo – bem como a presença de O tronco, de Bernardo Elis, O coronel e o lobisomen, de José C. de Carvalho e... alguns conhecidos romances de Jorge Amado. 

Essas obras estão em lista à parte, ao final, junto de outros “quadros” que agrupam as obras utilizadas por gênero. E isso é muito oportuno e útil para ler o texto e para quem quiser utilizá-lo para consulta e pesquisa. Mário Palmério lançou aquele romance no ano da graça de 1956, quando as musas caboclas nos deram também o GSV, de João Rosa. O pecuarista de Uberaba havia acumulado experiência como político e ouvia causos de nosso sertão mineiro.

 

"ESTEJA ESTREBUCHANDO!" Antes de prosseguir, uma ressalva, para atualizar a informação. Voltemos à outra resenha, publicada no post anterior, e mais exatamente a sua última página. Ali eu havia cobrado de Cícero, no âmbito de sua dissertação de mestrado, a interessante e inesquecível caderneta, uma peça lamentavelmente verdadeira da história geral do mandonismo: um desfile de regras absurdas e ameaças autoritárias. E agora descubro que o tal documento foi reproduzido na tese aqui exposta. Confiram na página 115: Fazenda Irapuru – Caderneta de Morador.

 

Essa bibliografia mais rica e mais atualizada arremata e combina bem com o plano da obra, que já se nota mais complexa que a dissertação de mestrado, desde a simples leitura do sumário. Ora, nosso colega, naqueles vinte anos que transcorreram entre as duas bancas, deixou o modelinho clássico da tríade métodos/material/discussão, pois não só escreveu quatro capítulos, como diluiu acertadamente as decisões e justificativas metodológicas ao longo das seções. Em duas décadas, o cabra que pesquisa vai se acostumando com o ambiente acadêmico e tende a buscar uma exposição mais “substancial” e firme, quase performática – pois as credenciais foram vencidas no projeto e não apetecem tanto ao leitor, fora da banca.

O amadurecimento do pesquisador SOARES NETO se mostrou já no capítulo primeiro, ao enfrentar o pesado campo da teoria clientelista e de suas variantes diante de visões conflitantes, oponentes. São paradigmas em disputa no ambiente acadêmico brasileiro, seguindo também – nem sempre com postura seletiva – certas influências internacionais.   A tese analisa a produção historiográfica sobre o coronelismo – no que amplia o tema anterior mais adscrito ao mecanismo do voto – e já demarca duas fases. Na fase clássica estão Leal, Faoro e... Isaura Queiroz. 

E, na seguinte, a da “contestação”, Cícero se inscreve ao lado de Blondel, Pang, bem como seu professor anterior, Saes. Há um ótimo quadro para entender essa dinâmica, na página 35. Ali fica claro também que a terceira fase, a da “reinterpretação”, acolhe autores que haviam publicado depois de 1984, como Andrade, Dantas e Barreira. Ou seja, a continuidade da pesquisa passou por uma atualização do state of the art, mas é certamente bem mais que isso.

O segundo capítulo retoma a análise sociológica da participação política – não só na perspectiva reducionista e unilateral da “dominação” pela falta de terra – e avança na demarcação histórica, de modo que a cronologia se estenda além do período da República Velha. E as “contribuições” da tese já se apresentam bem cedo, a partir da distinção entre as categorias de morador e sitiante e as correspondentes formas “voto de cabresto” / “voto de clientela”.

 

Convém-nos aqui um elogio ao método, com a deixa da entrada em cena desse novo ator: o sitiante. As pesquisas qualitativas e/ou participantes precisam ser valorizadas e difundidas na academia, que tende a privilegiar abordagens quantitativas e (aparentemente) neutras. Um exemplo de pesquisador que se tornou burocrata e avesso ao gênero, que depreciou maldosamente como “pesquisação” é ou foi Cláudio Moura Castro. Do outro lado, exemplos que levaram a sério a “pesquisa-ação” somos nós três e mais uma turma:  Carlos R. Brandão, este humilde resenhador do cerrado e, é claro, nosso autor Cícero José.

Muito atento a suas tabelas – que não pensam por si mesmas – o colega potiguar levou a sério justamente as cifras “restantes”, no pé das fichas com resultados da coleta de dados. Se em uma propriedade rural moravam duas pessoas e ambas deram seus votos em um certo pleito, não poderiam ser consideradas na coluna de “moradores” e, portanto, não estariam submetidas à chantagem sistemática do latifundiário. Esses “poucos” sitiantes significam, portanto, muito para a campanha de derrubar a “tese Q”, reducionista e historiograficamente mal informada.  Confiram essa demonstração de inteligência ciceriana na seção 2.3, como “terceira proposição analítica”.

Para entender como e quando o coronel perdeu seu trunfo e seu plantel de eleitores “cativos”, o leitor precisa ler com muita atenção a tese por extenso. Mas, logo perceberá que adota-se ali, de forma não revelada, a boa e velha abordagem materialista, no sentido básico da análise do modo de produção, através do desenvolvimento técnico. 

Só para assanhar o leitor, podemos adiantar que na década de 1950 as usinas de beneficiamento de algodão na região do Seridó  vão mudar a relação de poder e de barganha, ao retirar o protagonismo do tradicional e atrasado dono da terra. Cícero desce ao nível molecular para criar uma tipologia das usinas, mais ou menos complexas, para escalonar os processos de “valorização do voto”, sob a influência de novos agentes sociais. Dentre as usinas, que se valiam de corretores, destacam-se como mais determinantes da ruptura aquelas multinacionais, como foi o caso da conhecida SANBRA – sim, multinacional esperta inclui Brasil na sigla.

Cícero analisa de maneira magistral – na verdade, “doctoral”—a evolução da produção e da comercialização do algodão, inclusive pelo melhor aproveitamento do caroço, para óleo e resíduos. As usinas pequenas cederam lugar para as médias e grandes, migrando da zona rural para as cidades. A concentração delas e as novas modalidades de financiamento da produção ajudam a explicar a perda de poder do coronel no “mercado de votos”, inclusive pelo crescente êxodo rural.

Digo ajudam porque a tese de Cícero apresenta aos poucos, passo a passo, os argumentos que derrubam a tese dominante de Isaura Queiroz, para mostrar como e quando se deu tal ruptura: do coronel ao cabo eleitoral, que era, aliás, um tipo de corretor ou “cambista” ( termo que insiro aqui, por minha conta, pensando na portaria do estádio de futebol).

O quarto capítulo é constituído, então, pelas peças argumentativas oriundas da interpretação que conduzem ao enunciado geral sobre a ruptura. Essa seção é quase uma versão estendida da “Conclusão”, mas o capítulo final se justifica por montar uma bem orquestrada exposição em formato de fluxograma e em um nível mais “formal”, conforme anuncia e desenha o autor.  

Outro valor da pesquisa qualitativa, que se mantém vivo no “relatório final” constata-se na transcrição literal de depoimentos dos entrevistados: o homem comum lá na roça, parafraseando os analíticos ingleses era explorado pelo proprietário e, eventualmente, se sentia à vontade para explicar que sabia disso e como isso funcionava. 

A boa pesquisa de campo, que herdou algo de bom e útil das abordagens antropológicas e etnográficas, reconhece não só as categorias da visão de mundo dos ditos informantes, como pode aproveitar a terminologia mesma em que se expressam: “todo morador só votava com ele”(o coronel fulano); e, depois outro disse “tem a usina de algodão, eu faço negócio com ele...de algodão, ele é muito bom para mim, eu voto com ele, na oposição” (pag. 77 e 81)

Enfim, saiba o futuro leitor da tese de Cícero que ele prestigia sua primeira graduação: direito. Não se contenta em demonstrar os fatores demográficos e econômicos que alteraram a manipulação do eleitor – o que não seria pouco –  pois o poder dos landowners adaptou-se desde a época colonial até o fim da república velha, passando pelo império e coisa e tal. Mas, é claro que a legislação eleitoral também esperneou para costurar uma rede de proteção para o processo eleitoral, sem obrigatoriamente garantir o direito do eleitor, que vai além de votar.

 

Se uma resenha deve ser equivalente a um trailer de filme, então vou encerrar, pois chega de spoilers! Quem precisar e quiser que leia os livros do colega Cícero. Não vou dizer que os tais volumes “não podem faltar nas boas estantes”,  pois muitos jornalistas crus, políticos malandros e eleitores equivocados vão continuar a usar inadequadamente os seus títulos e as noções confusas. Em outros tempos, era perigoso confundir coronel com cabo eleitoral. E há outros perigos, para os quais a produção acadêmica não tem tanta força assim, nem efeito. Aqui, por exemplo, estamos desarmados, na onda do esclarecimento e do convencimento. Compadre Cícero e eu.



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