segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O tradutor de Raimundo Góis

Este é um post sobre o minúsculo grupo da Teoria Crítica, na Universidade Federal de Uberlândia. 

O post veio compensar o fim da correspondência: poucos escrevem cartas e menos ainda respondem. E essa decadência da escrita inclui intelectuais: não há mais cartas nossas que venham a ser publicadas um dia. Eu mesmo fiz um estudo sobre esse gênero ao traduzir e publicar cartas trocadas entre Kant e Lichtenberg. 

"Hoje pego na pena" para complementar uma fala em recente mesa redonda. Dirijo-me a um colega em particular e aos leitores do futuro. Preciso esclarecer em que circunstâncias eu pareci grosseiro e frio ao participar de uma banca que veio a aprovar para o Departamento de Filosofia o colega Prof. Dr. Rafael Cordeiro Silva. 

Lembrou o colega - e de fato eu não guardava essa cena em minha memória - que, durante a entrevista do processo de seleção, ele se dirigiu a minha humilde pessoa com a notícia de reconhecimento: sabia que eu havia traduzido um livro sobre Habermas. 

Transcrevo a seguir duas crônicas que já estavam escritas um pouco antes do dia 5 de dezembro de 2019, durante evento de comemoração dos 25 anos do curso de Filosofia na UFU.


"Seriedade acadêmica. Um conselho grátis para professores novatos, em bancas de concursos: jamais sorrir para candidatos. Há argumentos na ordem das razões, mas prefiro chocar com a experiência. Estivemos, dois colegas e eu, num processo seletivo para contratar professor substituto. Eu presidia a banca, que teve que reprovar alguns candidatos, com as devidas notas e carimbos. Uma senhora desse grupo “sem sorte” entrou com recurso. Pronto. Travou o processo e nos jogou no vai e vem com a justiça de procuradores e embargadores. Semestre correndo e alunos sem aula daquela matéria. As alegações da figura – no direito dela, que respeitamos também em sério – seguiram nessa linha assaz interessante: nós, os docentes da banca, teríamos recebido a dita cuja com umas caras boas e sorrisos nos lábios. E consta que acenávamos com a cabeça suavemente para frente e para trás, como se concordássemos com as respostas apresentadas pela reclamante durante entrevista, data vênia. Well, agora prescreveu e é hora de rirmos do episódio, mas o caso foi sério e não é agradável ser réu, nem ver contestadas nossas decisões lavradas em ata. Agora é cara feia e seriedade nos procedimentos, para garantir a legitimidade, como bem queria, desde seu ótimo título, o Sr. Niklas Luhmann, sistemático num sentido e talvez sisudo em outro."

Esse episódio foi anterior ao concurso do Prof. Cordeiro Silva. E o texto, inédito, repito: estava pronto antes do dia 5/12/19.

Ora, devo também ressaltar minha situação - de "autor" de terceira mão - como tradutor do livro de Raymond Geuss sobre Habermas e a Escola de Frankurt.  Essa crônica se refere a um fato de 1989 e foi escrita há um ano ou dois:


"Rio de Janeiro, Praia Vermelha, 1989. O filósofo alemão Habermas veio ao Brasil e fui ouvir suas conferências. Ele era meu “material de pesquisa” para o mestrado e eu, por ser um dos primeiros a estudar esse autor, fui convidado para um ciclo de palestras preparatórias. Avião, hotel, prestígio. Eu me senti como os músicos do Paralamas ou do Skank em show para esquentar a galera, nos primeiros anos de Rock in Rio: feliz com o sucesso alheio e o próprio. Em um intervalo entre as palestras, pedi ao colega Álvaro Valls que me apresentasse a Habermas. E fui, de fato, apresentado como “o tradutor do livro de Geuss”, no ano anterior, pela Editora Papirus. O visitante apertou minha mão e disse em bom alemão, que eu já era capaz de entender: “Não leve muito a sério o que ele diz sobre minha obra...” 

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Então, meu caro colega Rafael. Eis aqui uma resposta acadêmica: eu não podia rir muito em concurso e eu tinha medo de que você também achasse que eu piorei ainda mais o Habermas, em português, etc. 

Mas é igualmente bom lembrar que tivemos vários lances de colaboração e de gentilezas acadêmicas, inclusive bancas de pós e uma orelha para um livro. 

No campo das relações pessoais e familiares sempre estivemos bem e temos várias anedotas a contar, inclusive daquela cerveja alemã no café da manhã em BH, no dia 12 de outubro do ano 2000. 

No futuro, quando você se aposentar, talvez possamos ser - além de amigos - vizinhos nos Alpes suíços, como foram Adorno e Lowenthal. 

Mas não creio que o nosso condomínio de bangalôs fosse maior que isso, pois a Teoria Crítica em Uberlândia não tem um grupo grande. Em parte, a culpa desse encolhimento é a política partidária que nos irrita e afasta - nesta época infeliz de recrudescimento do fascismo.

Esse embate afeta nosso pequeno grupo, mas felizmente, não vale para nós dois, que somos mais da metade do contingente docente dessa tendência interessada em filosofia social. 

Atenciosamente,


Professor Dr. Bento Itamar Borges
(aposentado, UFU)