quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

ME CHAMEM PARA ESSE DEBATE

 


CAPA BEM BOLADA - SHOW DE SEMIOLOGIA


Se eu digo a alunos na sala de aula, em uma tarde de calor: "não pensem em um SORVETE agora!", é altamente provável que a imagem do ice cream virá a mente de muitos ou, talvez, todos. Mas, a imagem sensorial sugerida e provocada pela aparente proibição no enunciado ainda não é exatamente "pensar". Pelo menos não no sentido de "refletir", "ponderar", etc. 

Assim também, para prestigiar outro ramo em alta dentre as ciências da linguagem, a pragmática, o slogan "Beba cerveja Fulanabier Lager Malte gelada!" inclui a parte básica desse sintagma, com "Beba cerveja!", curto e grosso. Essa ordem ou sugestão funciona, de forma que as cervejas populares que não investem em publicidade se beneficiam da divulgação grátis. E quem estiver com pouco dinheiro, no fim de um dia de trabalho ou buscando emprego vai pedir ao dono do bar na vila, tipo "me dá uma latinha de dois pilas". 

A capa desse livro é muito rica e poderia render uma aula. Em meu exemplar, que não fotografei, consta ainda o adesivo com o preço: 15,00 - quinze reais, ou seja, três litros de gasolina ou seis latinhas de kaiser al tiempo. Então, por que alguém precisa pagar até 45,00 na Amazon? Preguiça, mania, moda... e outros aspectos de nossa sociedade atual, para os quais nem sempre aplicamos o critério de justo/injusto. Pois nos acostumamos com a exploração e damos por natural que os ricos nos dominem inclusive sob o novíssimo fetiche da tecnologia, que esconde o consumismo. 

O título do livro propões revelar a injustiça que se esconde debaixo de alguma proposta de implantação e realização da justiça social, o que não se compreende de forma rápida e intuitiva, devido a essa aplicação não usual de "social". A ilustração da capa atrai o potencial leitor que percorre as bancas no corredor do shopping com ar condicionado: capitalismo gera desigualdade, poder ao proletariado, transporte grátis... Opa! vou comprar e ler! 

As imagens de pessoas, todavia, montam uma amostra bastante estereotipada de um recorte sociológico, com quatro rostos de jovens não-brancos em gestos expressivos, punhos cerrados. Além da colagem sobreposta, "suja" como paredes de cidade grande, cheias de cartazes vencidos, onde se destaca a cor vermelha, que também foi usada no "in" de injustiça. E a mancha da metade superior da capa se reforça em fundo negro para a metade de baixo onde estão os outros termos do título. 

Quem der o passo seguinte, ao segurar o obejto-livro mais perto dos olhos lerá o subtítulo: "Desmontando mentiras e teorias absurdas sobre raça, gênero e identidade - e o males autoritários do politicamente correto". Hora de virar a mercadoria-livro para conferir a contracapa com texto impresso meio torto, que se abre com uma pergunta: "Afinal, por quem os justiceiros sociais estão  realmente lutando?" O texto com sinopse é apresentado em forma de cartaz para passeata ou muro e é sustentado por duas mãos de pessoa negra, que parece magra-subnutrida, cujo rosto está coberto ou escondido pelo mesmo cartaz e pelas intenções de autores, editores, artistas gráficos. 

A orelhas trazem declarações de Helen e James, bem como suas credenciais e fotos: jovens, brancos, bem nutridos... e eis que já está o quase-comprador lançando hipóteses sobre a falta de neutralidade deles e de uma terceira pessoa, Rebecca, que nos fez o favor de resumir o livro original, Teorias cínicas

Sim, a indústria editorial está em campanha de divulgação, ao simplificar o texto e expandir o leque de leitores curiosos, sem tempo ou com pressa. E eu sou um desses e de fato comprei o livro. Já  o li e rabisquei e ri e xinguei, deu murros na mesa... Eu precisava me informar sobre essas ondas de estudos e ativismo dos últimos vinte anos, sobretudo  porque me afastei da academia e da cena urbana há dez anos. Não quero apenas ficar antenado com o novo jargão, por razões de ética e etiqueta. 

Mas... não. Não vou escrever uma resenha aqui. O que espero é poder montar uma mesa do sindicato dos professores na universidade onde trabalhei... Entender esses novos fenômenos, as novas pautas e poder contribuir com uma parte do nó górdio (ops!), no enrosco do pós-modernismo com diversas fantasias do liberalismo. 

Minha fala seria ou será algo como uma "resenha ao vivo", e creio que vou gastar boa parte de meu tempo de fala com constantes ressalvas sobre como não quero ser confundido com os autores e suas posturas. E espero manter o bom humor, virtude que apreciei em recente leitura de um livro instigante de Frantz Fanon. 




[Mural fotografado por mim na ilha Dominica em 2017. 

"Los cinco cubanos" ficaram injustamente presos nos EUA, de 1998 a 2014.] 


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Dois livros de Antônio Almeida – notícias da militância sindical

 



 

Eu tive a subida honra, como diria Odorico Paraguaçu, de ser convidado para o lançamento do livro Experiências políticas no ABC Paulista, mormentemente porque eu já não estava na diretoria de nosso sindicato de professores da UFU e não sou historiador. Então, fui prestigiado pelo autor, que tanto admiro e a quem fui e sou grato.

O texto foi originalmente a tese de doutorado dele, defendida em 1996, USP. O título para a banca tinha sido Lutas, organização coletiva e cotidiano: cultura e política dos trabalhadores do ABC Paulista (1930-1980).



O lançamento, com debate, foi um dia de encontro de colegas de áreas teóricas diversas e também de diferentes setores do movimento popular e sindical em Uberlândia e região. A audiência era parelha com o teor do livro – mesmos sujeitos históricos das lutas e esperanças.

Hoje vejo que me preparei bem e demoradamente para o evento, pois rabisquei o livro todo e tomei notas nas últimas páginas em branco, algumas delas seguidas de pontos de exclamação. Temas como: trabalho e trabalhadores contra a ideologia do fim do trabalho; classe (Luta), mas não tanto luta de classes; direita / esquerda – contradições e conflitos; resistência!; Alegria – esperança; solidariedade! e... avanços obtidos.

O autor “ALMEIDA, Antônio de” – que antes e sempre foi para nós “o professor Antônio”, da História e da Adufu -   foi muito generoso ao autografar meu exemplar: “Amigo e companheiro de lutas Bento... Obrigado pelas jornadas e pelo entusiasmo na esperança de outra realidade mais justa. Antônio.”

 

El tiempo pasa... nos vamos poniendo viejos...” e de barbas brancas, de molho. Obrigado, Mercedes! E eis que, treze anos depois, compareci ao lançamento de um novo livro, cheio de memórias e reflexões do colega Antônio, igualmente aposentado e inventando nobres ocupações como essa de escrever e publicar. Esse evento foi na sede do sindicato, ADUFU, e estive na tranquila condição de ouvinte, na plateia, ao lado de minha filha Maíra.

Muito bom falar com o autor, já no momento relax dos comes e bebes. Legal rever os colegas do movimento sindical e popular. Pois Antônio sempre foi aquele camarada capaz de ajuntar grupos de bases diferentes e convergentes. E podem crer que ele colaborou muito nessa função de aproximar e aconselhar. Mesmo os outros colegas da nossa associação de docentes, os escaldados, os dinossauros, todos íamos até ele quando a barra pesava, quando o angu ameaçava encaroçar. Nosso Antônio era e é também um “conselheiro”. E não se trata apenas de conhecer o regimento e de saber propor táticas; é sobretudo a visão madura e ponderada, firme e compromissada com a grande causa popular-operária.

 

O livro contou com a contribuição de vários colegas, elas e eles, inclusive Raquel Radamés e Vera Puga, que assinam o texto da contracapa. Desta vez, o autor deixou como autógrafo a bela mensagem, extensiva a minha mulher, professora também: “Ao Bento e Wal. Obrigado pela convivência de tantos anos e pelos sonhos sonhados juntos. Antônio”.

 

Eu não pretendo fazer aqui nem ali uma resenha padrão deste novo livro de Antônio. Vou usar uma deixa de suas memórias, para promover um encontro para meia dúzia de colegas e umas duas dúzias de cervejas. Sucede que ele, bom historiador e tarimbado na esfera pública proletária, valoriza o boteco, em suas “memórias romanceadas do coletivo”. Ele criou personagens e inventou para si mesmo um nome e que assim vão se afastando e se reencontrando desde a infância nas lides campesinas até o trabalho acadêmico, passando por oficinas e escritórios. E muitas vezes, em qualquer quadra dessas seis décadas, as ideias se clareavam para a prática com boas doses de cachaça e copos de Brahma com colarinho.



Memórias entrelaçadas: o popular e o erudito nos espaços da universidade. Editora Subsolo, de Uberlândia, 2022. É um ótimo título para um itinerário que me fez lembrar o catatau de Sebastião Nery: A nuvem. O baixinho foi jornalista e assessor político e bicão onipresente, desde sempre. E gosta de repetir: eu estava lá, eu vi. Assim, eu também me vi envolvido pela leitura da crônica de Antônio, na onda do romance histórico, pois o tempo todo eu me via no enredo do colega professor, que saiu da roça e batalhou para estudar e melhorar o país e o mundo. E que acredito na permanência dos livros e na educação política através do debate e da mobilização.

Teremos que conversar num boteco – e faz tempo que não vou, desde que o Kabata fechou – pois este leitor aqui não conseguiria tomar distância para uma recensão acadêmica. A cada página eu ia anotando ou falando comigo mesmo: eu também estava lá, foi assim mesmo, eu me lembro bem... E as datas foram se alinhavando: 1961, 64, 78, 79, 82, 89... Nomes honrados (e também os nojentos) formando duas filas... dois arquivos.

Então, ao boteco. Lá, depois de umas tantas talagadas de Jurubeba Leão do Norte, eu poderei confessar ao autor Antônio onde foi que me emocionei – “com lágrimas nos olhos de cortar cebola...” – e quais parágrafos pulei por falta de estômago e de distanciamento no tempo histórico e biográfico. Foi golpe, foi genocídio. E cansa-nos o longo caminho da reconstrução.

É um livro importante, instigante e... pra manter a rima: intrigante. E não resisto ao bordão: “Esse livro não pode faltar na estante dos verdadeiros intelectuais empenhados e consequentes, etc.” E, de preferência, irão para a estante e para empréstimos a colegas de luta, devidamente amassado e cheio de anotações, sobretudo exclamativas. Uma caderneta de campo com nomes e apelidos. Um protocolo de pesquisa em aberto, entre o cotidiano e a teoria. Uma abordagem interdisciplinar e avessa ao relativismo pós-moderno.

 

Parabéns, colega Antônio de Almeida! De novo... e esperando mais.

 

(Uberlândia, dia de todos os santos, novembro de 2023 (inclusive Santo Antônio, São Bento, Santo Inácio, Santo Dias...)

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

"NÓIS VORTEMO COM UMA BAITA DE UMA REIVA" (Tugendhat, terceira parte)

 

Exemplos claros de eurocentrismo

Não se trata de um defeito de nosso homenageado, mas dos meios de comunicação estrangeiros e até de nossa consciência colonizada. À época do falecimento desse filósofo simpático e disposto a promover a inclusão do outro, poucos meios deram a notícia por aqui. E demorei para ver uma nota no site da ANPOF. Talvez sites de departamentos de filosofia e direito tenham prestado homenagens, de circulação mais restrita.

A onipresente Wikipedia atualizou o verbete Tugendhat por ocasião de sua morte, fechou o parênteses aberto com data de nascimento e reticências. Mas, não deu uma informação sequer sobre a passagem do filósofo pelo Brasil e nem sobre os livros que ele lançou aqui ou foram traduzidos por nós brasileiros. Achei apenas uma linha, como exceção, na seção  “Further Reading”, que indica um texto do colega Prof. Adriano Naves, de 2008, sobre a filosofia moral de Tugendhat.

A “Villa Tugendhat Bauhaus”, referida acima, deu a notícia da morte e até postou fotos de arranjos de flores e fitas roxas, mas, na curta biografia daquele de quem tomaram a residência... nada sobre a passagem dele pelo Brasil.

O respeitado canal estatal alemão Deutsche Welle seguiu o costume guiado pela empáfia e ignorou a passagem de Ernst pelo Brasil. Após apresentá-lo devidamente no título da matéria como “um dos mais importantes proponentes da filosofia analítica da linguagem na Alemanha”, a DW pula por cima de duas décadas:   “Em 1992, ele voltou a América do Sul para lecionar em Santiago do Chile. Ele então voltou a Europa onde passou a maior parte de sua aposentadoria em Tübingen, até se mudar em 2013 para Freiburg, onde faleceu”.

Mesmo a nota da ANPOF, assinada por L. C., merece complementos. “Anpof, Nota de falecimento, 15/03/2023. Durante a década de 1990, a presença do Prof. Tugendhat foi assídua principalmente nestas três cidades: em Ijuí (...); em Santa Maria, (...), e em Porto Alegre (...)”. Sim, tenho que completar com Goiânia. E não acho inoportuno, nem inadequado corrigir os jornalistas e filósofos alemães, pois muitos deles nos querem apenas para divulgar e traduzir suas teorias e delírios continentais, mas não nos tratam à altura.

Enfim, faço aqui o que o velho Ernest teria feito em sua defesa, se pudesse, em meio a elogios fúnebres eventualmente hipócritas: “Periferia não! Há uma intensa atividade filosófica no Brasil! E lá pude debater meus temas e os deles em alto nível, com intenções práticas, muss man sagen...” (Olhar cortante e murro na mesa. E isto foi uma homenagem).

Recentemente, um amigo do titio lançou – em um livro de memórias e causos – dois capítulos sobre sua passagem pela Alemanha, como bolsista. Um colega, que também tinha vivido lá por um ano, leu esses dois capítulos mesclados de críticas e anedotas e enviou o seguinte comentário, digno de nota:

Certa vez, perguntaram-me, quando estudei na Alemanha, se eu gostaria de morar na Alemanha, à qual indagação respondi: "a Alemanha e os alemães são ótimos, mas prefiro viver no Brasil. O interlocutor retrucou: por qual razão? E eu respondi: vocês são geniais, mas diminuem os estrangeiros e sua cultura. Vocês são orgulhosos demais, para cederem  espaço e consideração a brasileiros". (J.F.O.)




Agradecemos, em memória, ao grande músico e gozador Adoniran Barbosa. E aqui vai a estrofe inteira, do “Samba do Arnesto”, gravado em 1953:

O Arnesto nos convidou Prum' samba, ele mora no Brás Nós fumos, não encontremos ninguém Nós vortemos com uma baita duma reiva Da outra vez, nós num vai mais


 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

"...ELE MORA NO BRÁS" (ROUBARAM A CASA DO ERNESTO)

 

Ernst Tugendhat (1930-2023)

P.S.1) A casa modernista Bauhaus. Ernest era de família rica. Rica o bastante para contratar o famoso arquiteto Ludwig Mies van der Rohe, que desenhou casa-caixote típica da Bauhaus, construída em 1929-30. Ernestinho nasceu ali em 1930 e lá viveu até quase se entender por gente. Aí, os nazistas alemães invadiram a Tchecoslováquia. Como disse perto dali o pai de Carlos Raimundo Popper, “denn ist es leider Krieg”.  

 

Ou, como disse ou diria um certo Daudet, a respeito do automóvel: “C’est la guerre!” A família Tugendhat, que era judia, teve que fugir – primeiro para a Suíça e depois para a Venezuela. Sim, havia judeus ricos e os nazistas roubavam seus bens e tomavam suas empresas. Quem lê textos de ética precisa saber desses episódios. E quem tive coragem invente tempo e leia o livro preto com botas do cano alto: Behemoth, de Franz Neumann. Entender como o movimento fascista preparou e executou a cruel  perseguição, depois de expropriar e marginalizar os judeus pobres e ricos.

A casa, que é a única edificação modernista tombada pela UNESCO no território da atual República Tcheca, foi restaurada entre 2010 e 2012. Desde então, é um espaço cultural com o nome de Villa Tugendhat e ingressos a partir de 80,00 (oitenta reais). Podemos ver fotos, conferir preços e programação digitando-se apenas <tugendhat.eu>

Em 2007, Ernst e mais dois herdeiros entraram na justiça para recuperar a posse da casa da família, que então se tornara parte do patrimônio público municipal. E a prefeitura de Brno não a quer devolver, segundo o jornal Brno Daily. Ética e justiça não são meros conceitos, meus caros e minhas queridas. São demandas graves, disputas pelo espaço vital e em nome da honra, etc.

Tipo história de uma casa (assassinada ou tomada) pelo desvio do “tombamento”: a família perde para os nazistas o imóvel de referência afetiva e, depois, para o poder público restaurador, no que dão razão a tese-título de Walter Benjamin: documentos de cultura/documentos de barbárie. Com o perdão dos bárbaros.


Mies projetou essa beleza.
Nazistas tomaram. Prefeitura se apossou. 

Ernesto no prejuízo hasta la muerte... 


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

ERNESTO NOS CONVIDOU PRA UM SAMBA - parte UM

 

Ernesto, o Virtuoso

Supõe-se que um filósofo só escreva discursos fúnebres de pessoas de sua convivência ou, pelo menos, conhecidas. E é também claro que nem todos os conhecidos mereçam a deferência, pois a simpatia conta. E a antipatia desconta. E seria de péssimo tom avisar aqui uma ou duas exceções: sim, poderei elogiar raros falecidos antipáticos. Será que Habermas fez algo nessa direção, enquanto “anti-homenagem”?

Pois bem, sei que muitos colegas brasileiros teriam mais o que dizer sobre Tugendhat – e penso em Prof. Ernildo Stein e em Prof. Adriano Naves de Brito, por exemplo. E uns quatro de Santa Maria. Mas é claro que outros ainda levarão muito tempo para formatar um lamento em tese ou ensaio.

Ora, eu já devo ter algumas anotações prontas sobre o ilustre mestre, recém falecido. E vou recortar e colar aqui, sem maiores preocupações com a ordem. Depois completo o texto. Mas antes, devo apresentar credenciais, tipo o que eu tive a ver com o filósofo Tugendhat.

Em 1991 e 92, durante os créditos do doutorado, nosso professor Ernildo estava empolgado e lia tudo de Tugendhat – não duvidem – no âmbito de um projeto sobre “Linguagem e fundamentação”, do qual me afastei em seguida. Ora, nesse período, além dos seminários de longa duração, foi organizado um evento na Federal de Santa Maria, com a colaboração de nossos colegas de lá, os professores Rónai Pires, Christian Hamm, Robson Ramos e, talvez também Ricardo Bins de Napoli. Imaginávamos o que poderia passar pela cabeça dos alunos de engenharia ao lerem o singelo cartaz com a programação restrita: “Colóquio Tugendhat”. Caso algum tenha ido ao dicionário, não errou nada: o nome do filósofo contém “virtude”.

Não sei o que o próprio Ernesto teria pensado com essa fama toda, até se tornar objeto de um evento, mas fato é que alguns anos depois, em Goiânia, ele perguntou aos que o rodeavam: “mas o que está acontecendo no Brasil, quando todo mundo me quer em seu departamento?” Pior, como diz o goiano, é que eu era chefe de departamento em Uberlândia e levava mais um convite para que fosse nosso professor visitante.

Na verdade, Prof. Adriano Naves sacou mais rápido e conseguiu levar nosso homenageado para o programa de mestrado deles na UFG. E vejam que não só de teorias e celeumas acadêmicas viriam as motivações que facilitaram aquele contrato provisório. Os trechos a, b e  c a seguir já estavam prontos em minha gaveta de memórias e aforismos em processo de maturação.  Vamos lá, antes que a traça...

Ernst Tugendhat (1930-2023)
Filosofia é como aprender a dançar. 


a) “Filosofia e dança. Ensinar a filosofar é como ensinar dança. Na verdade, mostra-se como dançar, na dança. O filósofo alemão Tugendhat, nascido tcheco, Ernst, inicia assim um livro que foi em parte traduzido por Stein e alguns alunos, inclusive por mim. Ao conhecer Tugendhat em Goiânia, 1996, onde ele havia sido muito bem recebido, pude compreender e curtir melhor a definição. É que ele gostava de sair à noite, para dançar valsas e merengues com as morenas goianas, conforme contavam colegas nossos. O alemão sabia do que estava falando, tinha muito bem capacidade de comparar duas atividades ou, pelo menos, a maneira parelha de passá-las adiante. Mas é claro que não avança muito em filosofia aquele que entra no curso errado. São dois pra lá, dois pra cá”.

 

Meus filhos-crianças curtiam essa capa.
Pra mim, lembra Leibniz.

b) “Livrinho, não! Talvez o autor disso aqui [uma sequência de aforismos com vontade de ir para a gráfica] possa repetir sobre isso que se segue a frase do filósofo Tugendhat referente a uma publicação dele. Não se sabe aqui, ainda, a quantas páginas chegará esta brincadeira, se Deus lhe der vida e saúde mais engenho e arte. Então, falemos do Ernesto, o tcheco. Isso se deu em 2002 – conforme data na dedicatória –, no lançamento do livro de título estranho, Não somos de arame rígido (é que sempre cuido pra não dizer arame farpado). O editor da Ulbra, de Canoas, apresentou a obra, organizada pelo Prof. Valério Rohden, como um “livrinho”. O baixinho franziu as pestanas grisalhas, esperou uma pausa e sapecou: ‘Livrinho, não! É minha obra mais importante. Podem jogar o resto fora, mas não esta aqui...’ De fato, é um texto corajoso e denso. E não interessa a espessura do caderno ou se é grampeado com arame, hardwired.” [Ernesto, o Virtuoso, estava predestinado a essa disciplina. E incluiu a “sorte” como fundamento de sua ética, que traz a estóica fórmula: o sentido da vida é administrar as frustrações. Como bem disseram os poetas Aldir Blanc e Sílvio da Silva, na voz do quarteto MPB4 , “dei mais sorte com a B., atriz”.]


LIVRINHO NÃO!

(P.S.: Ok, eu sei que "TugendhaFt', virtuoso, 
contém uma letra F, etc. etc. Passe 
adiante and keep smiling)


 

c) “Compulsão à escrita. Tugendhat apresentava sua conferência no Goethe Institut. A seu lado, para coordenar o debate que se seguiria, Ernildo Stein tomava notas com caneta sobre folhas soltas de papel sulfite. Depois daquela boa meia hora de ética e ontologia, Stein reuniu as folhas com algum ruído e ajuntou-as com um clip. Tugendhat olhou o parceiro de lado, por baixo daquela espessa sobrancelha já meio grisalha. Comparou com seu próprio texto, que acabara de ler e sapecou com seu sotaque arrastado: “Mas vejo que você escreveu bem mais que eu...




AJUDEI A TRADUZIR ESTE. 
O lance de aprender a dançar
está aí, nas primeiras página
s . 


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

POST 200: comemorar com imagens

 












1988 - UFU 
(arte nossa / Silk by Peters)


Acima:
Cadeia e Aulas de Filosofia 
Paraguai / Museu

 
Mais Acima: 
Traduzindo Lichtenberg
em João Pessoa PB
Beach office improvisado
2011











Jaburu filósofo 





domingo, 30 de julho de 2023

DON JUAN, ÓPERA DE MOZART

 Em 1983, durante curso com Prof. Álvaro Valls,UFRGS,  tomo contato com essa ópera, a partir dos estudos dele sobre Diário do sedutor, escrito por Kierkegaard (Adorno, que era nosso assunto, dedicou-se ao dinamarquês em sua tese, A construção do estético).


Em 1991 ou 92, Porto Alegre, estudava alemão no Instituto Goethe, cuja biblioteca descartou um volume pouco lido e raramente emprestado, sobre essa ópera de Mozart, com o texto do libreto e outras referências. 

Em 2018, por aí, traduzi o que se segue e postei em um site que já não existe (bentoxvii.com). E agora encontrei por acaso no computer e resolvo deixar aqui. Fiquei um pouco chateado ao enviar um email ao colega Valls... que não deus os likes esperados. 


Quem quiser que procure imagens e sons dessa ópera famosa, com tempo para fruir lá e cá.

 

Origem e primeiras apresentações do “Don Giovanni”

(Lorenzo da Ponte)

 

Mozart, Martini[1] e Salieri[2] me pediram ao mesmo tempo um libreto. Eu amava e tratava com atenção todos eles e esperava dos três que nos fizessem esquecer as últimas óperas, que estavam em queda, e que pudessem aumentar a fama de meu novo teatro. Eu pensei comigo se seria possível tranquilizar todos eles, ou seja, escrever os três libretos de uma vez. Salieri não esperava de mim nenhum drama original; ele havia escrito em Paris a música para ‘Tarar’[3] e queria ter a ópera transposta para o italiano, ou seja, uma tradução livre. Mozart e Martini deixaram exclusivamente comigo a escolha. Eu escolhi para Mozart o ‘Don Giovanni’, uma coisa que lhe agradou imensamente, e para Martini, ‘A árvore de Diana’.[4] Era um material compatível, adequado à suas melodias suaves, que todos sentiam profundamente mas pouquíssimos podiam imitar. Assim que eu localizei esses três materiais, fui até o Imperador[5] e discuti com ele que eu queria levar adiante as três óperas ao mesmo tempo. “Isso você não vai conseguir”, exclamou ele. “Talvez não”, retruquei eu, “mas vou tentar. À noite trabalho para Mozart e penso enquanto isso no ‘Inferno’ de Dante. De manhã, escrevo para Martini e isso é tão bom quanto se eu estudasse Petrarca. À tarde, escrevo para Salieri, o que será meu [Torquato] Tasso”. Ele achou meu paralelo muito bonito.  Assim que cheguei em casa, comecei a escrever. E trabalhei nisso doze horas, uma depois da outra, tendo uma garrafa de [vinho] Tokay à minha direita, o tinteiro ao centro da mesa, um maço de cigarro de Sevilha à esquerda. Uma bela menina de dezesseis anos – eu devia tê-la amado apenas como a uma filha, mas... sabe como é... – morava na casa com a mãe, que cuidava das lides domésticas. A pequena vinha para perto, assim que eu tocava uma sineta, e eu fazia isso, para ser franco, com grande frequência e notei prontamente e de modo especial que meu fogo poético começou a esfriar. Ela me trazia ora um biscoito, ora uma taça de café ou simplesmente seu lindo rostinho, sempre alegre, sempre sorridente, que parecia conseguir inspirar intuições poéticas e ideias espirituosas. Eu continuei a produzir por doze horas ininterruptas durante oito semanas, e o tempo todo permaneceu ela por perto no quarto, ocupada com um livro ou com um trabalho manual, para me apressar, caso eu só balançasse suavemente o sino. Enquanto se mantinha sentada perto de mim, não se mexia, não abria a boca, me observava com firmeza, sem contrair os cílios, sorria suavemente, suspirava e engolia muitas vezes com uma pequena lágrima. Em resumo, a menina foi a musa para essas três óperas e permaneceu como tal a partir daí em todos os versos que escrevi no decurso dos seis anos seguintes. De início, permiti a ela essas visitas com muita frequência, mas tive que reduzi-las por fim, para não perder muito tempo com paradas para namorar, no que ela concordou perfeitamente.   Entrementes, no primeiro dia, entre o vinho Tokay[6], o tabaco de Sevilha, o café, o sino e a jovem musa, eu escrevi as duas primeiras cenas de ‘Don Giovanni’, bem como duas de ‘A árvore de Diana’ e mais da metade de ‘Tarar’, título que eu mudei para ‘Assur’. Pela manhã, levei essas cenas aos três compositores, que mal consideravam possível o que eles liam com seus próprios olhos. Em sessenta e três dias, estavam totalmente prontas as duas primeiras e quase dois terços da última.

A árvore de Diana’ foi exibida primeiro. O sucesso foi extraordinário e no mínimo igual ao de ‘Cosa rara’.

Logo depois da première, precisei viajar a Praga; lá o ‘Don Giovanni’ de Mozart teve que ser oferecido pela primeira vez ao público, para celebrar a chegada da princesa da Toscana. Eu fiquei oito dias, para introduzir os atores que participaram da peça. Mas ainda antes da première eu tive que retornar a Viena, por causa de uma carta de apelo enviada por Salieri: a ‘Assur’ deveria – sendo verdade ou não – ser encenada para o iminente casamento do Duque Franz. O Imperador havia recomendado que me chamassem de volta.

Eu viajei direto, então, dia e noite; todavia, a meio caminho eu fiquei cansado e me deitei para dormir por alguns minutos numa pousada. Quando os cavalos estavam prontos, alguém me acordou e eu pulei da cama ainda sonolento escada abaixo para a carruagem e parti. Logo chegamos a uma fronteira de aduana, onde exigiram de mim uma pequena soma. Eu enfiei a mão no bolso – e não encontrei um único soldo na carteira. De manhã estiveram ali cinquenta moedas[7] , que Guardasoni, o impresário de Praga, pagou como honorários pela ópera. Meu primeiro pensamento foi que eu tivesse perdido o dinheiro na cama, pois eu deitei de roupas. Viajei de volta, sem encontrar nada na cama. O dono e a dona da pousada, pessoas verdadeiramente adoráveis, ajuntam todo o pessoal, procuram, perguntam, ameaçam; contudo, cada um diz que não teve nada que ver com essa cama. Aí gritou uma menina de no máximo cinco anos: “Mama, quando o senhor partiu, a Caterina arrumou a cama, eu vi.” A dona do negócio pediu que Caterina se despisse e os cinquenta zechinos estavam debaixo do lenço que lhe cobria o peito. Eu estava tão feliz com aquilo que pedi à boa gente que perdoasse o furto da criada. Eu perdi duas horas com essa história e então viajei sem nova troca de cavalos até Viena e cheguei lá no dia seguinte. Eu mandei notícias para Salieri e me pus a trabalhar; dois dias depois, ‘Assur’ estava pronta. O sucesso no teatro foi tão grande, que eu fiquei muito tempo em dúvida, sobre qual das três óperas -- tanto pela música, quanto pelo texto – seria a mais perfeita. 

Eu não vi, por conseguinte, a apresentação de ‘Don Giovanni’ em Praga. Mozart, no entanto, me informou imediatamente sobre o maravilhoso sucesso e Guardasoni escreveu: “Viva Da Ponte, viva Mozart! Todos os empresários, todos os artistas devem elogiá-los. Enquanto ambos estiverem vivos, ninguém saberá o que seja miséria no teatro.” O imperador mandou me chamar, me louvou à sua maneira amigável, acima da multidão, me presenteou com mais cem moedas e disse que ele arde de vontade de ver o ‘Don Giovanni’. Mozart voltou e deu as partituras imediatamente aos copistas, que se apressaram em transcrever dali as vozes, pois o Imperador tinha que seguir para guerra contra a Turquia. O ‘Don Giovanni’ foi apresentado e... não agradou. Todos, exceto Mozart, achavam que faltava algo. Foram feitos acréscimos, as árias foram substituídas e a ópera foi encenada de novo – o ‘Don Giovanni’ não agradou. E o que disse o imperador sobre isso? “A ópera é divina, talvez mais bonita que ‘Figaro’. Mas ela não é comida para os dentes de meus vienenses”. Isso eu contei para Mozart. Ele replicou sem a mínima consternação: “Deixemos que eles tenham tempo para mastigar”[8]. E ele não se decepcionou. Eu me preocupei com sua piscadela, significando que a ópera seria repetida muitas vezes. À cada apresentação, crescia o aplauso, a cada dia os senhores de Viena com péssimos dentes encontravam o sabor nessa ópera, percebiam a beleza e davam ao ‘Don Giovanni’ o posto que lhe era devido: eles a consideraram dali em diante uma das mais belas óperas jamais encenadas em um teatro.    

Fonte: Da Ponte, Lorenzo, “Entstehung und erste Aufführungen des ‘Don Giovanni”, in: MOZART, Wolfgang Amadeus. Don Giovanni. Texten, Materialien, Kommentare; Attila Csampai und Dietmar Holland (eds.) Hamburg, Rohwohlt Taschenbuch Verlag GmbH, 1981, p. 190-194

TRADUÇAO BENTO ITAMAR BORGES 

[1] Vicente Martín y Soler (Martini) nasceu em 1754 em Valência e morreu em 1806 em São Petersburgo. Escreveu para a ópera de Viena em 1786 a bem sucedida ópera “Uma cosa rara”(libreto de Da Ponte), que cita o tema “Oh quanto un si bel giubilo” retirado do segundo final de Mozart para o ‘Don Giovanni’.

[2] Antonio Salieri (1750-1825) compositor italiano de óperas. Permaneceu desde 1774 em Viena e foi de 1788 a 1790 o mestre da capela real e concorrente de Mozart. A afirmação espalhada de que Salieri teria envenenado Mozart pertence ao reino das lendas.

[3] A ópera ‘Tarar’, com texto de Beaumarchais, teve sua estréia em 8 de junho de 1787, em Paris e foi reelaborada um ano mais tarde por Da Ponte e Salieri em ‘Assur, Re d’Ormus’ [Assur, rei de Ormuz].

[4] Livro-texto conforme um modelo até então desconhecido (espanhol?). Estreia da ópera em Viena em 1.10.1787.

[5] O “Kaiser” referido é José II (1741-1790), filho de Maria Theresia, que reinou a partir de 1780.

[6] Vinho Tokay ou tokaji é uma bebida doce, oriunda da região da Hungria com esse nome, desde castas específicas de uvas e que foi objeto de disputa para registro de apelação, bem antes do vinho do Porto. Famoso entre artistas e reis, desde o início do século XVIII.

[7] Zecchino: moeda de ouro corrente à época. NT

[8] Mastigar (kauen) e não, comprar (kaufen); erro de digitação no livro de onde copiamos o texto. NT

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Voto de cabresto e entreveros acadêmicos

Caros leitores e queridas leitoras, desculpem a falta de imagens e a formatação pobre. Deu tilt aqui e não posso me demorar na lan house...(F do C) O colega Prof. Dr. Cícero JAS Neto comenta a causa depois de ler as duas resenhas que publiquei neste blog. Quem quiser ler meus textos, procure em posts recentes. Agradeço a consideração do colega, ao visitar este blog e retomar uma conversa sobre metodologia e coisas parecidas, do tempo em que trabalhamos juntos na UFU, desde 1985. Prof. Bento, colega de trabalho e amigo pessoal. Inicialmente, manifesto o meu agradecimento por uma atitude nobre de resgatar e provocar um debate acadêmico em torno da dissertação e da tese, sobre a temática do coronelismo no sertão nordestino, em geral, e no Seridó potiguar, em particular. Após duas tentativas inviabilizadas por conta dos aplicativos usados, argumento esta reflexão com um novo tom analítico: socialização desta temática por intermédio do IFILO, via instrumentalização do Ciro Amaro, após a sua dissertação de mestrado, ok. Vamos aos pontos básicos: duas vertentes devem ser focadas: a questão conceitual e a abordagem metodológica. O intrigante, em relação ao primeiro tema, o coronelismo, se transforma no ponto de conflito interessante de ordem pessoal, em função de que, na formação teórica do início do mestrado, se transformou na crise pessoal. Por quê? A referência interpretativa dominante era balizada pela escola uspiana, direcionada pela argumentação analítica da Prof. Maria Isaura. Ficava me perguntando: o que vim fazer aqui? Se a análise da professora, consagrada estudiosa da questão do poder local, apresentava uma leitura significativamente hegemônica, aonde um nordestino potiguar pretende enveredar? Crise real, moço. Entretanto, como a trajetória de cada um é escrita de forma singular, ok. No primeiro evento na USP, no qual a doutora estava presente e, após a exposição da comunicação oral, a investigadora deu um “banho” de diplomacia e incentivo, apoiando e estimulando a pesquisa temática na diretriz do coronelismo. O susto inicial veio para a realidade e expulsou a visão distorcida do objeto de estudo, ponto. Moço, se a professora da USP está falando isto, de onde vem este papel de limitação acadêmico? Realmente, a atitude e a cordialidade da pesquisadora se transformaram num impulso significativamente representativo do que se estava escolhendo como procedimento metodológico investigativo. O debate interpretativo sobre a questão do poder local tinha uma estrutura sólida, ao se identificar as origens das linhas reflexivas dominantes: USP e STF, ficou clara a pequenez? Aonde o olhar investigativo do nordestino pretende caminhar? E a chave representativa da ruptura aconteceu, por dois motivos singulares: inicialmente, a participação nos eventos acadêmicos, de forma permanente, contribuiu para referendar que se abria um espaço analítico profundo. Por quê? A percepção inicial do pesquisador iniciante não tinha percebido um detalhe real: os analistas eram interpretes de um real histórico que eles nunca tinham se aproximado, com certeza. Apesar do ministro ter, em suas mãos, leituras documentais representativas fundamentais para a sua reflexão, existe um real verdadeiro: faltava o trabalho de campo, na via sociológica, com certeza. A doutora da USP não teve tempo para exercer este papel, afinal de contas, vivia numa dimensão São Paulo-Paris, por exemplo. O insight se instala: existe algo vulnerável no procedimento metodológico a ser explorado, com certeza. E a motivação significativa da nobreza da Professora Maria Isaura em reconhecer que havia um campo investigativo a ser explorado. Foi dito que existiam dois motivos fundamentais para a exploração da leitura teórica. O segundo se refere na revisão bibliográfica na Unicamp, nas publicações dos periódicos abundantes que abordavam a temática. Principalmente, em espanhol: na realidade mexicana, latino-americana e europeia: restrito, principalmente, as abordagens conceituais. Moço, o horizonte dizia algo: o campo investigativo está aberto. Por exemplo, para focar num debate representativo do que foi despertado: a distinção entre os sistemas de mediação e intermediação na realidade da dimensão do poder local. Este tema não havia sido focado na leitura dos analistas representativos desta questão. Espera, algo se encaixava com a pequenez de outrora. Se a leitura dominante não abordava a encruzilhada interpretativa, real e histórica, por que não focar na exploração da divergência conceitual. E a chave fundamental de cair na real: no trabalho de campo, no mestrado, aconteceu a ratificação de que existe um existencial que não foi visitado pelos analistas brilhantes. Mas, que não foram ao mundo concreto. Operacionalmente, a vertente do testemunho memorialista sinalizou por qual via perceber a fonte da caminha metodológica. E detalhe significativo: inicialmente, o foco investigativo resgataria homens nascidos no Século XIX, ou seja, testemunhos de homens do campo que teriam condições de fornecer detalhes investigativos que se provocaria a percepção de um horizonte analítico representativo do olhar de um pesquisador novo que não estaria preso ao mundo da dimensão superior que não tinha a dimensão do contexto concreto. Algo compreensível e concretamente real. Ao se perceber esta via, o trabalho de campo confirma a mudança básica de mentalidade pequena e reconhecer que o trabalho iria ratificar as leituras dos artigos oriundos de inúmeros estudos interpretativos pelo mundo afora, até asiáticos. Gente, uma mina reflexiva se apresentava, de forma coerente. Neste sentido, brotou a confiança pessoal. E as participações nos eventos brasileiros e latinos, com certeza, ratificaram a pretensão reflexiva delirante de separar os sistemas de mediação e intermediação, que a literatura analítica teimava em amalgamar. És o caminho metodológico que se apresentava para mudar a visão de colonizado analista. Algo novo pode ser dito. Vamos a um exemplo: na banca de avaliação do projeto de doutorado, vejam bem, doutorado, houve um questionamento significativo de que se estava transformando o cabo eleitoral numa dimensão revolucionária. Agora, o debate se carregava de confiança e inexistia a pequenez do passado analítico. E, para confirmar o fundamento da diretriz reflexiva, o testemunho memorialista do entrevistado ratificava a leitura paradigmática. Opa, chegou o fundamento da tese, algo real e historicamente comprovável, com certeza. E, novamente, nos eventos latinos e brasileiros, além da Portugal, o foco interpretativo se consolidava, de forma coerente. O que dominava no passado, a pequenez, se transporta para a confiança que a matriz analítica se pontuava na direção historicamente coerente. Enfim, Prof. Bento, este lado pode contribuir para um viés de uma leitura incentivadora da diretriz que desafia cada um no caminho da proposta investigativa e que, realmente, temos que reeducar os limites internos que bloqueiam a proposta de trabalho singular de cada um. Boas vibrações energéticas positivas neste seu empreendimento virtual que só tende a tomar uma dimensão representativa de um acadêmico que se aposenta, mas, não se afasta do investimento em dar trabalho para o intelecto, senão alguém estará ali na esquina para se desenvolver na nossa mente cansada. Parabéns pela atitude espero ter contribuído. E já sinalizo uma contribuição nova, a via temática da relação emoções-câncer, que se visa compreender a dominação social registrada no canal somático, principalmente, pela via do sofrimento oncológico. E que, também, tem sido amadurecido por algumas participações nos grupos de estudos envolvendo a sociologia das emoções e a saúde. Valeu e vamos investir.

domingo, 25 de junho de 2023

"NÃO MACHUQUEM AS MULHERES, OH SENHORES!"

 

Sete poemas de Nazim Hikmet

 


Fonte: Yeni Siirler / Novos poemas (1951-1959), volume 6. Istambul, Editora Adam Yayinlari, 1987, 184 páginas.

 

Nazim Hikmet (1901-1963): poeta turco, que pertenceu ao Partido Comunista da Turquia, viveu alguns anos na Rússia e passou por outros países da URSS – foi membro importante da vanguarda europeia, contracenando com Maiakóvski e outros poetas militantes.

 

Livro de sebo. Estes poemas foram traduzidos por mero deleite com mel de tâmaras e ainda no entusiasmo das descobertas, faz algum tempo. Contei com a colaboração do compadre Google Tradutor, mas tive uma tarefa considerável para compreender os poemas – ou torná-los legíveis em português – bem como manter a métrica e as rimas, quando era o caso. Nem todas as referências de nomes e lugares foram recuperadas, também devido às diferentes transcrições de chinês para o turco e, daí, para nossa língua portuguesa do Brasil. É um esforço inicial de tradução; não um estudo e nem uma tese sobre teoria da tradução. Eu já havia vencido a resistência quanto ao uso de máquina, após traduzir com sucesso Hobbes desde o latim, para cotejar com inglês.

 



1 – Zhichun Ting

 [Çi-Çun-Tin, página 15]

 

 

Zhichun Ting, a mansão paradisíaca no lago Kunming.

A cruel Cixi vem pálida olhar daqui a primavera.

Eu também olhei. Sandálias passavam entre lírios:

E cantavam “Amanhecer no Leste”.

 

Navio de Pedra

Há um navio em Kunming, casco feito de pedra,

Velas cheias de vento da China

Uma que não se move

Uma que cai na tristeza.

 

Sobre a escultura

Em Wan Shenzen, mármore, olmo e marfim

Nas mãos heroicas de mestres da seda

Eu vi: esse texto é a síntese da delicadeza

Beldades de Pequim em roupas azuis de trabalho.

 

1.10.52 e o bolchevique Ivan

Pessoas brilhantes fluíam da Praça Tiananmen.

As mais áridas terras são fertilizadas por esse rio.

Assisti as festividades ao lado do Sun Yat-Sem.

Primeiro mártir do Palácio de Inverno bolchevique Ivan.

 

(Pequim, 1952)

[NT: Zhichun Ting ou Pavilhão Zhichun é uma edificação na margem oriental do lago Kunming, dentro do complexo Palácio de Verão. Cixi ou Si-Si foi a imperatriz que em 1888 desviou dinheiro para construir obras suntuosas como o Barco de Pedra – Shifang – de 36 metros, em mármore, para repor um barco de madeira queimado 28 anos antes.]

 

 

2 - Noite

[Aksam, página 35]

 

Assim como nas planícies da Anatólia,

O ar é azul

Poeira rosa

Luz roxa,

É noite na planície húngara.

As árvores são familiares como as árvores de nossa planície,

Ao pé das árvores no frescor do entardecer suado, quente

O solo parece um capuz de soldado.

O solo parece um capuz de soldado, dessa cor,

Tão infinito, vasto

Assim como nas planícies da Anatólia

É noite na planície húngara.

As estrelas estão pousando nos galhos

Entre folhas

Junto com os pássaros,

As árvores são familiares àquelas de nossa planície.

As semelhanças param aqui.

É noite, é terra, é uma árvore.

Em nossa planícies as crianças estão famintas

Noivas de vinte anos de idade.

Em nossas planícies, os bois têm um palmo de comprimento.

Nossas planícies não planícies húngaras.

 

(30 de março 1954)

[NT: Aksam, título original, tem uma cedilha no “S” e soa como “aksham”.]

 

 

3 - Mensagem

[Mesaj, páginas 44-45]

 

Pacientes,

Meus irmãos, vocês vão melhorar.

 

Dores e males diminuirão.

Conforto, aquecer

entre galhos pesados e verdes

como noite suave de verão.

 

Pacientes, meus irmãos,

Um pouco mais de calma, de teimosia.

É a vida esperando

Atrás da porta,

E não a morte fria.

O mundo atrás da porta,

O mundo está lá cantando.

Você se levantará de sua cama,

Irá embora.

Você descobrirá de novo o sabor

Do sal, do pão, do sol lá fora.

Amarelar como um limão, derreter, igual cera

Cair de repente feito um plátano oco.

Meus irmãos, pacientes,  

Não somos limões, nem velas, nem plátanos.

Somos humanos, graças a Deus,

Graças a Deus, sabemos juntar esperança

A nossos remédios.

“Preciso viver!”

Diga

De pé insista

Pacientes,

Meus irmãos,

Vamos ficar bem.

Dores e males, diminuirão,

Conforto, aquecer

Entre galhos pesados e verdes

Como noite suave de verão.

 

(Frantisko, Lanzi – 30.6.1954)

[NT: Frantiskov Lazne, República Tcheca, na região dos balneários Karlovy Vary, mas as datas em fontes biográficas dão o ano 1958, quando o poeta Hikmet teria passado por aquelas águas medicinais. Por exemplo, em <karlovarsky denik.cz>]

 

4- Não deixem que nuvens matem gente

[Bulutlar adam öldürmesin, página 54]

 

De homens fazem elas os humanos que são.

Uma delas não te pariu entre dores?

Mães são uma luz adiante na escuridão.

Não machuquem as mulheres, oh senhores!

-Não deixem que nuvens matem gente.

 

Um menino de seis anos corre bem cedo,

Sua pipa está voando sobre o arvoredo.

Você já brincou assim livre sem medo.

Não maltratem as crianças, senhores!

-Não deixem que nuvens matem gente.

 

As noivas que penteiam seus cabelos

Procuram alguém no fundo do espelho.

Claro, muitas noivaram com esses velhos.

Não ofendam as moças, meus senhores!

-Não deixem que nuvens matem gente.

 

Na velhice, só as boas recordações

Devem nos fazer suspirar saudosos.

Que vergonha: não magoar os anciões.

Senhores, vocês também são idosos!

-Não deixem que nuvens matem gente.

 

(Fevereiro – 1955)

[NT: Duas bombas de extermínio foram lançadas pelos norte-americanos sobre o Japão em agosto de 1945; os russos fizeram testes em 1949 e 1955...]

 

5 - Independência

(Istiklal, páginas 85-86)

 

Eu conheço esses navios de guerra, exércitos

Eles também desembarcaram soldados

Em minha terra à noite.

Eles tinham sede do meu sangue.

Queriam roubar a luz dos meus olhos,

A habilidade de minhas mãos.

Nós derrubamos eles no mar.

Foi no não de 1922...

Meu irmão egípcio:

Nossas canções são irmãs,

Nossos nomes são irmãos,

Também se irmanam nossos cansaços.

O que há de belo, grandioso, vivo

Em minha cidade: pessoas, ruas, plátanos

Eles estão com você em sua guerra.

Em minhas aldeias, a “Palavra Antiga”*

É lida no idioma local, para Sua vitória.

Meu irmão egípcio, eu sei, eu sei,

Independência não é um ônibus;

Você perdeu um, precisa pegar outro.

A independência é como nossa amante:

Você traiu uma vez,

Vai ser difícil voltar de novo.

Meu irmão egípcio,

Seu sangue misturado

com as águas do canal.

A terra natal de uma pessoa

Torna-se a sua casa mais uma vez

À medida que seu sangue se mistura com seu sangue

Se mistura com seu solo e

Sua água.

Aquele que não sabe

Morrer pela pátria

Nem sequer está vivo.

 

1956, Kasim

[NT: Novembro 1956 – a crise do Canal de Suez começara em 29 de outubro, quando Israel, apoiado por França e Reino Unido, declarou guerra ao Egito. Nasser, que havia nacionalizado o canal, saiu vitorioso, uma semana depois. / *outro nome para o Alcorão.]

 

 

6 - “Sofra”

(Sofra, página 113)

 

Fiquei louco naquela cidade,

Varna me jogou no divã, verdade.

Na mesa tomate, pimenta,

Linguado frito.

“Ó criados!” diz o rádio. Brisa do mar negro, bonito.

Leite de leoa no copo de raki:

Acorde, anis!

Minha língua falada fraterna e feliz...

Um bem, melhor, bem feito...

Essa Varna me enlouqueceu

Louco de divã, eu...

 

(6 de junho 1957, Varna)

 

[* “Sofra”, em turco é “mesa”, mas preferimos deixar o título no original, pela coincidência com tema clássico da poesia – sofrer, nem que seja depois, saudades. Varna é cidade da Bulgária, banhada pelo Mar Negro, “Karadeniz”.]

 

7 - Homem otimista

(iyimser adam, página 178)

 

Quando criança não cortava as asas das moscas

Não amarrou no rabo dos gatos latinhas

Não prendeu baratas em caixas de fósforo

Não perturbou pobres formiguinhas

Ele cresceu

E fizeram tudo isso com ele

Eu estou a seu lado quando você morre

Um poema leia, disse

No sol no mar

Com caldeiras atômicas nas luas

Para a glória da humanidade

 

(Baku, 6 de abril, 1958)