domingo, 15 de julho de 2012

UM ROMANCE E DOIS PAVÕES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA UNIVERSAL

- Capítulo 994 -

 Esta série, que ainda não deu origem a nenhum longa, conterá algumas histórias com metragem variada. Hoje, a tarde fria de domingo inspira-nos relatar os percalços e as alegrias de uma aventura arriscada: aproximar Hegel e Goethe. Esse exercício rendeu um belo texto, modéstia à parte – até porque não se deve pautar por tal virtude quem quiser convidar para a mesma mesa esses dois alemães. Mais que cachorros grandes, dois pavões. Consta que um dia se encontraram na sala de um editor que tinham em comum. Pode ser. Mas nós quisemos fazer aquele tipo de leitura cruzada. Enquanto muitos querem ver, por exemplo, filosofia em um poema, preferiríamos ler, em geral, algumas obras filosóficas como se fossem romances. Só algumas, pois outras não chegam a contos mal escritos, crônicas caducas. E outras, enfim, são chatas ou ilegíveis.
Em meus cursos de filosofia, desde o mestrado, topei mais com o Kant e menos com o Hegel. Contingências e escolhas. Em 1983, na UFRGS, mestre Cirne-Lima teve que interromper sua leitura do Prefácio da Fenomenologia do Espírito. Problemas de coração.  Sarou e continuou com seu projeto de uma dialética aberta, inclusive na versão para principiantes.  
Em 1991, comecei um doutorado na USP e lá veio de novo o tal Prefácio da Fenomenologia. Paulo Arantes anunciou que ia ler parte dele. E eu tinha que pegar uma carteira na fila do gargarejo, pois ele falava tão baixinho que na segunda fila ninguém ouvia. E ninguém ligava ou reclamava ou mudava de cadeira. Parece que isso fazia parte do estilo USP, do charme, de um tipo de desprezo, equivalente a carregar um mísero caderno ensebado em uma bolsa hippie de alça enorme, a bater nas panturrilhas. Desfaçatez e encenação geral. Vi duas aulas e parei. Só agüentei três semanas de São Paulo. Nada contra a USP ou o Cebrap - nada ou quase isso. Um dia volto ao tema. E nem foi devido à dicção de Arantes. Deixem para lá. Resultado: na segunda tentativa, empaquei nas primeiras linhas.

Em 1998, comecei uma pesquisa sobre gêneros literários na filosofia. Orientava duas bolsistas PIBIC. Em pouco tempo, muitas idéias novas e algumas publicações. Coisas como “ética e narrativa”, que me levaram a estudar biografia e auto-biografia, em busca de uma “questão fundamental”. Uma dessa idéias: a Fenomenologia do Espírito me parecia uma romance. O subtítulo, que poderia ter sido o título, dava um apoio à hipótese: história do desenvolvimento da consciência.
Em 2001, durante um pós-doutorado,  reuni algum material – sobre os romances de formação e sobre a Fenomenologia. E li um dos capítulos do Wilhelm Meister. Fazia sentido e mantive o projeto de escrever a respeito.
Em 2003, inscrevi-me para fazer uma comunicação em um colóquio do GT de Filosofia da História. Fui aceito, mas, à época da realização do evento, tive que atuar em um comando de greve, em Brasília – docentes contra a Reforma da Previdência. A organização permitiria que um colega apresentasse meu texto. O colega foi lá, no hotel certo, na hora certa. E foi impedido: não conseguiu ler meu texto, que já tinha um título ao gosto alemão, tipo “Fenomenologia do Espírito als Bildungsroman”.
Em 2004, naquele bem organizado e agradável Encontro da ANPOF, na Bahia, o XI, pude apresentar minha proposta em uma mesa-redonda. Beleza. Enfim! E aí chegava a hora de ler Hegel por conta própria. E comecei a ficar encafifado com uma outra questão, a propósito da confraria que divulgou e traduziu Hegel na França e, depois, no Brasil. Mas isso é outra história e não vamos entregar a rapadura tao cedo.
2008: da Bahia para o Recife. Participei do II Simpósio de Filosofia do grupo Hegel. Uma boa mesa e um bom debate, daqueles que se prolongam pelos corredores, com pedido de endereços e cópias. O ilustre tradutor da obra de Hegel aqui referida, o Padre Paulo Meneses, estava lá, em casa dele, e foi uma honra conhecê-lo e cumprimentar um mestre desse naipe. Detalhe que não ornou com o momento de turismo: uma dengue pernambucana me pegou de jeito, a segunda. E chega.
Água na fervura. De volta ao cerrado, peguei de tarefa e completei algumas leituras. Li uma nova edição de Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Li o romance de James Joyce, Retrato do artista quando jovem. E um dos romances da trilogia do contemporâneo J. M. Coetze, Juventude. Do outro lado, li textos diversos dos grandes estudiosos e tradutores de Hegel, além de teorias do romance. Com isso, considerei que a idéia, que tinha virado conferência, agora já poderia ser publicada, como artigo – um ensaio, é claro. Enviei a proposta para a revista Educação e Filosofia. E... a revista devolveu o material, como rejeitado. Aí foi minha vez de recusar: eu não iria entrar com apelação. E, como já havia feito antes, preferi manter o texto na sua forma e extensão originais. De boa, de novo. No regrets.

2010. Bingo! Na PUC de Porto de Alegre, em boas mãos. Como diz meu velho, sobre males que vem para bem, olhem o destino feliz dessa minha pesquisa, feita sem pressa e com prazer – e ninguém precisa pagar mais caro por isso... O artigo foi aceito e publicado pela revista Veritas, da PUCRS. Mais que isso: minha aproximação de Hegel e Goethe – para embaralhar obras de ambos – foi publicada na boa companhia de alguns especialistas em Hegel, coisa que eu não sou. Tem até alguns alemães aí no índice. Cheio de moral. Foi o volume 55, nº 3, uma edição temática especial, sobre  Filosofia do Direito.
Moral da história: nada demais. Se alguma revista ou GT ou editora recusa seu texto, casca fora, hau ab! Procure outra e escreva outras e novas coisas enquanto espera. E nada de tripudiar, nada de revidar ou se achar. Deixa quieto e comemore em petit comitê esse pequeno prazer do trabalhador intelectual no embaraçoso mundo acadêmico.
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Quem quiser ler minha tentativa, pode entrar nesse endereço da revista Veritas:

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Wim Wenders adaptou o romance de Goethe no filme
Movimento Falso.




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