Homenagem ao colega Tiago Adão Lara
(*1930/+2019)
Neste ano de 2019, até fins de
setembro, eu já perdi oito ou nove pessoas queridas. Mas isso não pode abalar
um filósofo. Nem mesmo diante de coincidências como esta: Tiago se foi no dia
26 de setembro, quando meu pai estaria completando 96 – se não houvesse também abreviado
seus dias há três anos. Seria irracional desesperar-se ou achar sentido na
numerologia. Talvez Tiago nos repreendesse, já que escrevera uma série de
livros sobre as façanhas da Razão no Ocidente.
Disse algum filósofo – ou, se não
for o caso, eu mesmo digo – que é importante realizar ou desvelar cada um o seu
próprio nome. Pois Tiago, que nasceu em São Tiago, já começava bem, ao explorar
suas iniciais: ele era o T.A.L. e assinava como tal. Ele passou por Uberlândia
e deixou fama, uma boa fama. Um dos poucos professores com seguidores, num
sentido anterior e mais amplo que o das redes sociais, virtuais – nem sempre
virtuosas. Grupos iam a suas palestras, caravanas se deslocavam para Juiz de
Fora, a celebrar aniversários de um sujeito inquieto e que nunca coube na
categoria de aposentado ou idoso. E eu mesmo segui até Juiz de Fora, para uma
boa conversa com ele e seu público.
Eu não vou aqui recortar e repetir
o lattes de nosso colega. Cada um pode conferir datas e títulos lá. Prefiro
falar de minhas lembranças e impressões dele e sobre ele. Mas recomendo a quem
não o conheceu e nem leu nada dele: leiam a entrevista que ele concedeu um dia
depois de lançar seu livro-balanço. Darei o endereço eletrônico ao final. E
incluirei o título do referido livro também nos arremates deste que poderia ser
um discurso fúnebre, mas é sobretudo um perfil filosófico-pedagógico. Se alguém
aí se lembrou de um livro de Habermas, acertou: Perfis filosófico-políticos, no
caso do alemão, sobre seus colegas.
Eu mesmo achei o fio da meada
para esta homenagem lá naquela entrevista, concedida em 1996. Estive, nos
últimos quinze dias, pensando muito no que escreveria, como diagramar, como
encerrar. E eis que encontrei, naquela iluminada conversa entre ele, Mário
Alves e Maria Vieira, o fio condutor e a confirmação da imagem que construí
dessa pessoa notável e merecedora de nosso respeito.
À guisa de exemplo – de minha
memória e, mais ainda, da presença marcante e da verve de nosso homenageado –
eu sempre mantive algumas passagens da entrevista, que bem ilustram a atitude e
o estilo de Tiago. Ele era, mesmo que fora do eixo das bienais de arte, um cara
performático. Diante da onda de comunicações remotas, mediadas pelas
eletrônica, ele disse que era um sujeito antigo, pois era alguém da era da
escrita. Se um dia quisessem encontrar uma pessoa jurássica, que ainda escrevesse,
podiam procurá-lo para exibição. E curtia escrever à mão. Num evento com um
grupo de agentes sociais, fora do ambiente acadêmico, ao promover o clima para
um debate sobre lixo, ele cuspiu no centro da sala: ploft! Choque e silêncio. Para
chocar e perguntar se aquilo era ou não era lixo. Ou então sugeria que todos
olhassem para cima, para avaliar o tipo de telhado que os cobria – um parâmetro
para avaliar classe social e condições de vida dos envolvidos no processo de
ensino e aprendizagem.
Confirmo o que ele disse na
entrevista: ele teria se recusado a escrever na linha acima
“ensino-aprendizagem”, pois fugia do jargão que ia se enraizando nas falas
acadêmicas. E eu também percebia isso. De repente, era “postura”, depois
“clivagem”, depois “travejamento” – tudo, para evitar o contaminado conceito de
“estrutura”, por exemplo. E aí vieram os plurais: saberes, culturas,
imaginários. E a gente olhava de banda essa terminologia evasiva e
invertebrada.
Em outra ocasião, alguém vai
saindo da sala de aula e diz a ele “Tiago, um abraço!” – o professor chama de
volta o sujeito e diz e faz: “eu estou aqui, vem aqui e me dá um abraço”. Esse
é o máximo da performance, da definição ostensiva. Reencontrei essa bela
atitude de filósofo em outro, o gaúcho Jayme Paviani, que resumiu assim seus
agradecimentos, depois de uma homenagem na PUCRS: “Não vou discorrer sobre a
gratidão; vou agradecer: muito obrigado a vocês!”
Eu posso apostar que, durante
aquela histórica entrevista, Tiago se postou como sempre fazia em reuniões:
tirava os sapatos e enroscava os seus pés vestidos de meias nas pernas da
carteira escolar. Ficava sempre aprumado na cadeira, gesticulava muito e usava
expressões como “o governo quer enfiar o pau na roda”, ou seja, travar nosso
trabalho, cercear nossa liberdade de pesquisa, sucatear nossas condições de trabalho.
E, assim como fazia João Cabral de Melo Neto, nosso colega sempre conferia com
a audiência: “compreendem?”, “estão entendendo?” – pois ele era um professor. E
falava isso rapidamente, como quem dissesse “né”. Mas ele não diria assim, pois
não queria que a audiência concordasse com ele; queria transmitir com clareza
sua lição, sua mensagem. Escolástica da boa.
De repente, nesses últimos dias, pensei que
poderia apresentar Tiago aqui como um moderno, no sentido que a discussão
assumiu naquele final de anos noventa, por exemplo em Lyotard: moderno é quem
acredita nos grandes discursos. Pós-moderno é quem não acredita mais nisso. E a
“Razão” era um desse grandes discursos. O que me pareceu? Que um ex-padre, como
era o caso de nosso colega, passou a adotar outra conversa pesada como essa que
ele quis arrastar desde os gregos até onde teve fôlego ou até onde a editora
Vozes podia bancar. Um sucedâneo para a cruzada em prol da cristandade? Menos:
uma editora e um autor interessados em combater a ignorância e o preguiça.
Mas não era bem isso. Tiago via
que seus alunos em diversos colégios e faculdades não tinham pré-requisitos e
não sabiam do que se falava em sala de aula. E ele era um professor que queria
ser compreendido no ato. Ele era apressado, afobado até. Então aquelas
apostilas, numa época carente de textos básicos, vieram a ser um livro e depois
uma série que cobriria vinte séculos de especulação. Mas isso não implica que
ele fosse um racionalista estrito. Os entrevistadores Mário e Maria exploraram
bastante essa oposição entre razão e emoção, com referência a livros de sucesso
à altura.
E além disso, Tiago era – ao
lado da esposa Maria Helena – um homem de ação, sobretudo em ação pelas causas
da educação popular e na luta pelos direitos humanos.
Voltarei a esse aspecto de
humildade e coerência do casal. Mas não posso deixar de revelar aqui outra
riqueza da empreitada de Tiago nessa série sobre a Razão a passear pelo
Ocidente, por caminhos difíceis e cheios de armadilhas da metafísica e enroscos
da dialética. Sucede que ele defende, ao final da entrevista, a mesma tese de
meu herói alemão favorito: Habermas deixou um texto forte com título de raro
bom gosto – “a modernidade, um projeto inacabado”.
Ora, se o projeto moderno não se
cumpriu, então não podemos dar espaço aos pós-modernos, que são apenas
neo-conservadores (na visão de Habermas e de seu crítico aqui). O que nos cabe
é continuar a desenrolar o projeto moderno, fazer valer seus altos valores humanos
como o belo, o justo, o verdadeiro.
Aqui devo confessar – e confessar
traz mesmo um cheiro de sacristia – que numa ocasião dessas, com data marcada,
eu entrei de Pilatos no Credo. Foi em 1989, quando Tiago e eu e uns três
pioneiros da filosofia na UFU organizamos o primeiro curso de especialização. A
deixa foi a revolução francesa nos seus duzentos anos. O cartaz pequeno e
barato, xerox fosca, era ilustrado pela figura de Delacroix, a liberdade a
conduzir a humanidade. Mas a arte improvisada nem deixava ver o detalhe... dos
peitos de mãe à mostra. Pois bem, o tema era a liberdade e daí o liberalismo.
Eu dividi o programa de minha disciplina com o Professor Cícero. Em minhas
trinta horas apresentei “por dentro” a filosofia de Karl Popper: conexões do
falibilismo com a engenharia social que veio dar na Escola de Chicago, na
agenda liberal desumana e coisa e tal. (E o Delfim Neto ainda por aí: vaso ruim,
difícil de se refutar... )
Tiago convidou para o curso um
colega seu que sabia tudo de história das idéias, sobretudo dentro das
tradições do catolicismo. Riolando Azzi era o nome do padre ou ex-padre. Um
show de erudição para nosso proveito e deleite. Tiago também havia estudado no
mestrado e no doutorado importantes tendências do pensamento religioso (e
conservador) na escola do Recife.
Pois bem, com base nesses cursos
– e eu fui ver todas as aulas de Tiago e de Riolando, pois
interdisciplinaridade também era isso – e me empolguei a ponto de escrever um
artigo. Ora, eu já havia publicado uns quatro ou cinco artigos dentro dos
padrões acadêmicos, mas acontece que nessa época eu estava muito ligado aos
eventos culturais da cidade, escrevia e desenhava charges para jornais locais,
enfim, estava ensaiando um lance mais urbano, underground. E aí, meu texto
misturou o tema duplo do curso - “saber e poder” - na direção da canção de Caetano
Veloso, “Podres poderes”, no estrondoso
disco Velô, banda excelente.
Para piorar minha barra, joguei
com o trocadilho “padre/podre”. Pronto! Dancei de vez. Professor Tiago torceu o
nariz, afastou o manuscrito, resmungou. E recusou o artigo. Não para a nossa
revista. Ficou só na xerox distribuída em sala de aula. Nesse momento e talvez
só ali me alinhei a uma versão suave do pós-modernismo, no reles sentido da
“porralouquice” dos anos meia-oito. Nessa época, pós-modeno incluía uma
subcultura punk ou neo-barroca. Em seguida, eu reassumiria – por cima de certo
anarquismo – o programa de levar adiante o programa emancipatório, ou seja,
moderno (capitalismo tardio).
Estamos chegando ao fim desta
homenagem, para arrematar – mas sem amarrar as pontas. E o fim não é nenhuma
catástrofe. Quero falar das últimas atividades em conjunto, as mais recentes
leituras. Mas antes, completo o perfil de Tiago em sociedade e em família. Ele
continuava – ao lado de Maria Helena – a viver na simplicidade, pois foram os
dois morar em um bairro operário. E circulavam de fusca meio verde meio cinza.
E o guarda-roupa básico de Tiago era uma pequena coleção de calças de tergal,
camisas sóbrias E sempre aos ombros um colete básico para os meses frios. Mais
que a simplicidade, sobressaía-se a generosidade.
Em 2008, Tiago me convidou para o
café filosófico que ele organizava em Juiz de Fora. Eu paguei a gasolina de meu
VW e corri bastante para o Sul de Minas. Eles me hospedaram no apartamento onde
moravam. Essa coisa dos movimentos populares e eclesiais de base, que poucos e
cada vez menos entendem. De lá e de cá. Depois de um vinho, mais tarde, ainda
ganhei de lembrança do casal: um belo cálice de estanho, produzido na região
onde Tiago nasceu, São João Del Rei. Minha exposição lá se misturou com o meu
livro de pós-doutorado: uma defesa do ensaio.
De novo, quinze anos depois que
ele saíra de Uberlândia, voltei a ver Tiago sem os sapatos, com os pés
enrolados na cadeira, a espinha na direção do palestrante (como nos ensinou o
livro O Corpo Fala): muito atento a
minha fala, tomava notas, pronto pra começar a sessão de perguntas. Fiz o que
pude, mas percebi que ele queria mais, esperava mais. Não me preocupei ao
decepcioná-lo, em algum grau, pois a pressa de seu raciocínio e sua sede de
saber, sua ganância era o que ainda e sempre o movia. Eu mesmo me diverti ao dizer que aquela minha
palestra era apenas... o ensaio da seguinte.
Agora, por ocasião de seu
falecimento, achei na internet uma nota num jornal de Juiz de Fora, que
destacava a importância daqueles eventos do café filosófico que Tiago criara e
mantivera por tanto tempo. Ele deixara a docência mas não se aposentava como
pensador, como agitador cultural. Ele tinha que por a Razão a caminho, ainda e
sempre.
Nosso Departamento de filosofia
foi criado - ou “redimensionado”, como constava nos autos em 1987 - com a
divisão da grande área da Pedagogia. Éramos uma equipe que lecionava Filosofia
disso e daquilo além de Metodologia Cientifica em diversos cursos.
Logo no início, tivemos uma boa
iniciativa: a criação da reunião acadêmica. Diferentemente das cansativas
reuniões burocráticas, essas serviram de imediato para a exposição das
dissertações de mestrado, teses de doutorado e projetos da prata da casa. Tiago
e eu fomos os primeiros. Ele deve ter tido duas sessões pois já era mestre em
77 e doutor em 88. “As raízes cristãs do pensamento de Antônio Pedro de
Figueiredo” cresceriam para “Tradicionalismo católico em Pernambuco”.
Também por conta de seus contatos
e orientadores, Tiago foi importante na criação e na condução de nosso primeiro
“laboratório”, o NUCLA. Vieram falar conosco o grande nome da pesquisa sobre
filosofia no (e do) Brasil, Antônio Paim e, pela nova geração, José Maurício de
Carvalho, dentre outros. Tivemos uma rica permuta de resenhas e presença em
eventos entre Uberlândia e São João del Rei, mas não nos envolvemos demais nos
grupos luso-brasileiros, como esse que estuda linhas de pensamento em torno de
Antero de Quental. E, um dia, numa reunião, Tiago declarou que o Núcleo de
Cultura Latino-Americana já não era bem o que ele queria. De fato, as
atividades políticas e culturais foram nos afastando do questionamento inicial
“se existe uma filosofia latino-americana”, etc.
Tiago tanto era capaz de...
“enfiar o pau na roda” de nossos projetos a desandar, como se dava ao direito
de se afastar de pensadores mais conservadores nesse meio, no ambiente da Gama
Filho, por exemplo. O liberalismo era o
seu corpus de pesquisa; não era sua linha política. Por essa época, ele também
desinteressou-se pelo positivismo. E me indicou para ir em seu lugar a um
evento dessa linha em Curitiba, 1990. Fui e falei de avanços de Habermas – no
embate com Popper e Hans Albert – em uma mesa onde pontificava com toda clareza
e convicção o grande pensador e ativista brasileiro Leônidas Hegenberg. Tiago
me concedeu essa grande oportunidade e fiquei agradecido.

Esse nosso colega era mesmo o TAL
e foi incluído na importante publicação do Centro de Documentação do Pensamento
Brasileiro. O fundador do CDPB foi Antônio Paim, que orientou Tiago no mestrado
e apresentou o livro dali resultante, em 1977. A base do acervo foi a
biblioteca pessoal de Paim, doada para essa bela causa. Estive lá, para visitar
a sede do centro, que fica perto do elevador Lacerda, em Salvador.
Mas nosso colega Tiago fez por
merecer: virou verbete no Dicionário
Biobibliográfico de Autores Brasileiros, obra publicada pelo Senado Federal,
em 1999 – numa série que traz clássicos da pesada como Euclides da Cunha,
Nabuco, Rui Barbosa, dentre outros.
Quem quiser ensacar fumaça pode
reclamar da ausência de um Paulo Freire nessa dicionário. Eu mesmo quero achar
que outros estão sobrando lá, como o breve ministro Ricardo Velez Rodrigues,
triste figura. E nem era brasileiro. Tudo bem, a Barbara Freitag é alemã e
consta no dicionário. E nem é por viés político, pois o Darcy Ribeiro coube...
Enfim, o livro está impresso e costurado. Tiago merece o reconhecimento e não
elaborou a listagem. E cabe a nós outros prestigiar a memória e a obra de
Freire e outros que ficaram fora daquela fonte de consulta.
O que me interessa é que, em sua
prática docente, o professor Tiago Adão Lara pode ser colocado, sim, ao lado de
Paulo Freire, que conheci e tanto admiro. Isso tem que ficar claro hoje: esta
aproximação é um elogio e um duplo reconhecimento. A primeira aparição pública
de Paulo Freire, em 1981, após voltar do exílio, no Congresso de Leitura da PUC
de Campinas. Eu estava lá. Foi de arrepiar ouvir o grande mestre contar de sua
infância, sobre como aprendeu a escrever com graveto no chão do quintal de sua
casa no Recife, aos dez anos, antes de ter lápis e papel. A palavramundo... (Isso
está publicado como “A importância do ato de ler”)
Pois assim também Tiago, em seu
impressionante livro A escola que não
tive... O professor que não fui... fez um balanço de sua vida de aluno e
professor (e professor que aprende). Livro dedicado a seu pai, que tinha sido professor
também. Ora, eu não me propus aqui a fazer um tratado exaustivo nem mesmo de
minhas lembranças ou das atividades coletivas em que nos envolvemos, na
academia, na revista, no sindicato, na ação política. É uma amostra e ninguém
precisa esperar sínteses. Por exemplo, o que fazer com os poemas de Tiago? O
livro, organizado por Maria Helena e ilustrado por Lucimar Bello, apenas espera
ser relido – como são lidos os poemas.

Tiago Adão Lara, eis um nome que precisa
ser lido por inteiro. Deve ser uma regra da métrica poética, mas é também, com
dizem os hermanos norte-americanos: ficar famoso é revelar o nome do meio. E a
fama é boa, que eu ajudo a propagar. Essa abordagem negativa é a cara do colega
aqui relembrado: não tive, não fui. Essa aparente incompletude expõe aquela
sede de saber e de realizar, que tanto o caracterizava. Se ele tivesse tido tal
escola e sido tal professor, não duraria muito. Ia logo dizer o oposto do que
dissera antes, à moda Raul. Ele, em seguida, discordaria do que houvesse feito
e conquistado, para não se acomodar, pois não suportaria enrijecer escola e
professor numa recaída metafísica. Sempre o processo, a dialética aberta.

Eu me orgulho de dizer, encerrando
esta homenagem, que Tiago Adão Lara foi o grande colega-professor que eu tive.
E que a escola que de fato temos hoje na UFU – com a filosofia em seu centro
geodésico – muito deve a esse grupo pioneiro, da transição e da implantação. E
o Professor Tiago Adão Lara foi ali, para nós todos, uma figura central,
fundamental.
Prof. Dr. Bento Itamar Borges