Ernesto, o Virtuoso
Supõe-se que um
filósofo só escreva discursos fúnebres de pessoas de sua convivência ou, pelo
menos, conhecidas. E é também claro que nem todos os conhecidos mereçam a
deferência, pois a simpatia conta. E a antipatia desconta. E seria de péssimo
tom avisar aqui uma ou duas exceções: sim, poderei elogiar raros falecidos
antipáticos. Será que Habermas fez algo nessa direção, enquanto
“anti-homenagem”?
Pois bem, sei que
muitos colegas brasileiros teriam mais o que dizer sobre Tugendhat – e penso em
Prof. Ernildo Stein e em Prof. Adriano Naves de Brito, por exemplo. E uns
quatro de Santa Maria. Mas é claro que outros ainda levarão muito tempo para
formatar um lamento em tese ou ensaio.
Ora, eu já devo ter
algumas anotações prontas sobre o ilustre mestre, recém falecido. E vou
recortar e colar aqui, sem maiores preocupações com a ordem. Depois completo o
texto. Mas antes, devo apresentar credenciais, tipo o que eu tive a ver com o
filósofo Tugendhat.
Em 1991 e 92, durante
os créditos do doutorado, nosso professor Ernildo estava empolgado e lia tudo
de Tugendhat – não duvidem – no âmbito de um projeto sobre “Linguagem e
fundamentação”, do qual me afastei em seguida. Ora, nesse período, além dos
seminários de longa duração, foi organizado um evento na Federal de Santa
Maria, com a colaboração de nossos colegas de lá, os professores Rónai Pires, Christian
Hamm, Robson Ramos e, talvez também Ricardo Bins de Napoli. Imaginávamos o que
poderia passar pela cabeça dos alunos de engenharia ao lerem o singelo cartaz
com a programação restrita: “Colóquio Tugendhat”. Caso algum tenha ido ao
dicionário, não errou nada: o nome do filósofo contém “virtude”.
Não sei o que o próprio
Ernesto teria pensado com essa fama toda, até se tornar objeto de um evento,
mas fato é que alguns anos depois, em Goiânia, ele perguntou aos que o
rodeavam: “mas o que está acontecendo no
Brasil, quando todo mundo me quer em seu departamento?” Pior, como diz o
goiano, é que eu era chefe de departamento em Uberlândia e levava mais um
convite para que fosse nosso professor visitante.
Na verdade, Prof. Adriano
Naves sacou mais rápido e conseguiu levar nosso homenageado para o programa de
mestrado deles na UFG. E vejam que não só de teorias e celeumas acadêmicas
viriam as motivações que facilitaram aquele contrato provisório. Os trechos a,
b e c a seguir já estavam prontos em
minha gaveta de memórias e aforismos em processo de maturação. Vamos lá, antes que a traça...
Ernst Tugendhat (1930-2023)
Filosofia é como aprender a dançar.
a) “Filosofia e dança. Ensinar a filosofar é
como ensinar dança. Na verdade, mostra-se como dançar, na dança. O filósofo
alemão Tugendhat, nascido tcheco, Ernst, inicia assim um livro que foi em parte
traduzido por Stein e alguns alunos, inclusive por mim. Ao conhecer Tugendhat
em Goiânia, 1996, onde ele havia sido muito bem recebido, pude compreender e
curtir melhor a definição. É que ele gostava de sair à noite, para dançar
valsas e merengues com as morenas goianas, conforme contavam colegas nossos. O
alemão sabia do que estava falando, tinha muito bem capacidade de comparar duas
atividades ou, pelo menos, a maneira parelha de passá-las adiante. Mas é claro
que não avança muito em filosofia aquele que entra no curso errado. São dois
pra lá, dois pra cá”.
Meus filhos-crianças curtiam essa capa.
Pra mim, lembra Leibniz.
b) “Livrinho, não! Talvez o autor disso aqui
[uma sequência de aforismos com vontade de ir para a gráfica] possa repetir
sobre isso que se segue a frase do filósofo Tugendhat referente a uma
publicação dele. Não se sabe aqui, ainda, a quantas páginas chegará esta
brincadeira, se Deus lhe der vida e saúde mais engenho e arte. Então, falemos
do Ernesto, o tcheco. Isso se deu em 2002 – conforme data na dedicatória –, no
lançamento do livro de título estranho, Não
somos de arame rígido (é que sempre cuido pra não dizer arame farpado). O
editor da Ulbra, de Canoas, apresentou a obra, organizada pelo Prof. Valério
Rohden, como um “livrinho”. O baixinho franziu as pestanas grisalhas, esperou
uma pausa e sapecou: ‘Livrinho, não! É
minha obra mais importante. Podem jogar o resto fora, mas não esta aqui...’
De fato, é um texto corajoso e denso. E não interessa a espessura do caderno ou
se é grampeado com arame, hardwired.”
[Ernesto, o Virtuoso, estava predestinado a essa disciplina. E incluiu a “sorte”
como fundamento de sua ética, que traz a estóica fórmula: o sentido da vida é
administrar as frustrações. Como bem disseram os poetas Aldir Blanc e Sílvio da
Silva, na voz do quarteto MPB4 , “dei
mais sorte com a B., atriz”.]
LIVRINHO NÃO!
(P.S.: Ok, eu sei que "TugendhaFt', virtuoso,
contém uma letra F, etc. etc. Passe
adiante and keep smiling)
c) “Compulsão à escrita. Tugendhat
apresentava sua conferência no Goethe Institut. A seu lado, para coordenar o
debate que se seguiria, Ernildo Stein tomava notas com caneta sobre folhas
soltas de papel sulfite. Depois daquela boa meia hora de ética e ontologia,
Stein reuniu as folhas com algum ruído e ajuntou-as com um clip. Tugendhat
olhou o parceiro de lado, por baixo daquela espessa sobrancelha já meio
grisalha. Comparou com seu próprio texto, que acabara de ler e sapecou com seu
sotaque arrastado: “Mas vejo que você
escreveu bem mais que eu...”
AJUDEI A TRADUZIR ESTE.
O lance de aprender a dançar
está aí, nas primeiras páginas .
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