quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

NOTAS SOBRE LITERA...DURA '93

 


- o ovo da serpente já estava no ninho há muito tempo -

Isso aqui dá um bom roteiro para um documentário de curta-metragem. Do tipo que começa leve e ingênuo, em tom de impressões turísticas e familiares. Mas, acreditem: a paisagem diferente não me fez esquecer dos problemas e compromissos com nosso Brasil precioso.

Ao organizar de novo minha biblioteca, consegui despachar, doar e enviar para a cooperativa de reciclagem uns duzentos quilos de xerox, cadernos, livros e outros papéis da gaveta, tipo “miscelânea”. Isso foi ontem, em fevereiro de 2025. Na pasta com documentos e cartas entre este bolsista e o DAAD – muitas assinadas pela simpática Dona Helga Wahre, encarregada de latinos em geral – encontrei umas doze páginas manuscritas amareladas,  de bloco de pequeno.

As notas registraram impressões iniciais, sobre paisagem, costumes e curiosidades da língua alemã, desde o vôo de ida, pela Lufthansa, até a instalação em Kassel e uma visita a uma família na Baviera. Mas o leitor poderá se surpreender, ao final desta postagem de blog, com uma nota tristemente premonitória para a política e a vida no Brasil. O ovo da serpente já estava no ninho, um quarto de século antes. E o título da reportagem, que me pareceu então exagerado – “Um país à deriva, rumo ao suicídio” – veio a ser válido para nosso quadro histórico recente. Confiram, mas não percam o passeio que vem no início. E é para “não perder” as notas em papel pequeno e amarelado que me dou ao trabalho de transcrever e publicar o que se segue. Obrigado pela visita ao nosso cerrado...

22/7/1993 – São Paulo, quinta. Doze horas de espera e sono e preços altos. Mais confusões entre Capes e Varig. Na passagem não consta que sou bolsista Capes/DAAD. Com troca de ironias, consegui provar. A chefinha liberou um quilo, aliás 41. Revista só para armas. Canivete vai.

Saímos de São Paulo às 22. Boeing 747-300, um Jumbo enorme. Viajamos na asa esquerda. Enorme asa; nada para ver. Uma Sônia (Sonja?) viajou do lado, para provar que alemão é simpático. KV deu-lhe um banho de vinho tinto por culpa de um filé mal passado. A moça se levantou, ocupou outro banco e, no outro dia, mostrou sorriso. Escrevi pequeno bilhete lamentando o ocorrido e a interrupção de um bom papo com mais espanhol que alemão. De graça, psicanalisei KV... que, como prova final, ainda dormiu atravessada em três bancos. Vôo sem escalas, devendo ter sobrevoado o Saara e Argélia. Dormi mal, como em ônibus. Sede besta, bexiga cheia... balanços e onze horas de ruídos das turbinas ao lado. Ficamos longe da tela, mas o filme era ruim. Vários canais de música. Logo ouvi Debora Blando cantando Maçã [de Raul Seixas]: “O ciúme é só vaidade; sofro, mas eu vou me libertar”.

23/7- sexta: Frankfurt a Kassel.

- Belo pouso! O carrinho da bagagem é massa, com freio, três rodas. Beleza! WC, Geld Wechsel [trocar dinheiro], informações sobre ir para a Hauptbahnhof [estação central]. “Ich habe ein paar Schwein gekauft...” [comprei uma porção de ‘porcos’, ou seja, fiquei rodando em volta uns minutos, feito peru bêbado...]. Como comprar o bilhete do metrô? Alguns americanos também com dificuldade. O jeito é especular aos transeuntes.

Grande coincidência. Ao tentar falar com Ezat [palestino, amigo de um amigo], disquei sem o prefixo 0561, Kassel, e atende uma moça portuguesa de Frankfurt, com certeza... Ora, pois! Puxou papo. Os orelhões não devolvem troco. Aqui precisamos de bolso grande para passaporte e moedas.

Metrô para a Hauptbahnhof (2,60 marcos). Ninguém pediu passagem.

Na fila da passagem de trens, mulheres de Trinidad Tobago. Bela estação. E boa viagem para Kassel, com o trem lento (100 km/h...) e barato (48,00). Um luxo para nós e era de 2. Klasse! Meu pai ia gostar. Muita lavoura, inclusive de milho. Vacas, pombo, 2 cães pretos. Cobrador super-educado, “Wie Sie wollen...” [Como o Sr. quiser...] E educados vários que ajudaram a carregar as malas e deram dicas. Só alguns bestas, como dois taxistas, que não quiseram carregar nossas malas. “Piau” nos levou a “Auf dem Stützel” (15,00 marcos. Não mais.)

Ezat quer dizer “o homem que tem tudo” e... empresta tudo ao amigo do amigo do amigo [...Felipe/ Alfredo/Bento...] Que Allah o proteja!

Sábado, 24. Bom sono. Banho quente, café.

Máquinas. Muitas máquina. Máquinas demais. Na fazenda, uma corta o capim, o feno. Outra esparrama para secar, outra faz uns rolos enormes para guardar para o inverno.

Qualquer obra de nada requer um guindaste montado, enorme (Kran).

Muito gasto de energia elétrica. Todos os fogões, torneiras, banheiros. E como aquecer uma fábrica, escola? As casas tem tantas portas, para segurar o ar quente, com borrachas iguais às de geladeira.

Muitos carros. Aí vem os avisos no rádio: 3 km Stau, 23 km Stau [congestionamento]. Wirklich! [ é mesmo!] Todos tem carros. Carros novos e tratores antigos; velhos fazendeiros mantem seus Fendt, Hanomag...

Nos Weiss: 1 moto Suzuki e 1 BMW grandonas, que foram pelo Sr. Erwin reparadas, 1 Kadett 1200 do pai, 1 Kadett de 22 anos do Stefan e uma Kombi Camping, diesel, ótima, umas 5 ou 6 bicicletas.

Desperdício: Mercedes como táxi. Já peguei 2.

Ah! A Kombi dos Weiss já foi a muitos países, inclusive Grécia, Espanha, Schotland (...) Tio Juca tinha que ver:

- cama embaixo e no teto, que levanta (como o “dragão”no livro do Cortázar), são duas de casal;

- cama vira sofá para 3 mais dois banquinhos;

- mesa;

- fogão 2 bocas (gás) + pia com água bombeada de reservatório debaixo do sofá-cama + geladeira (gás, bateria ou energia)

- motor diesel (e bom!)

- muitos armários, tudo dobrável e prático.

- leva bikes atrás

 

(...) Eindrücken [impressões]

2/8/93: Uns caras pescando no Meno, Frankfurt. Grandes caniços, vermelhos (...) na espera. Vi peixe pulando no canal de Lüneburg. Peixinho morto em Brüchlim, Ottobeuren, no Schachenbad (?) um lago onde Marcus e Andrea estreavam seu “Tornado” sob olhares da mãe Marion e do pai, filho de Frau Weinald e Herr Georg. (...)

Não só há bichos nas florestas de Bienenbüttel, como é permitida a caça, com armas. O caçador passa por um curso complicado, que inclui os hábitos dos bichos e como reconhecer uma fêmea, que em certas épocas não devem ser abatidas. Mas é sacanagem demais. O caçador fica em uma cabine elevada [jirau], com janelas de vidro. Em outra clareira, tiveram a paciência de plantar milho e outras ervas, entre cercas de tela baixa, que obrigam os bichos a irem em direção ao caçador que se aboletou na tal cadeira de espera, camuflada...

Vidro moído usado para pavimentar ruas, com brita. Aí o sapato não dura nada...

Carvalho = Eichel

Tília = Linden (unten den...)

Primeiro dia em Memmingen: comemos “Maultasche” no restaurante Hoigata.

Hunde Namen [nomes pra cachorros]: Daki, Chico, Basil, Amor. E um Katz [gato] Tapsi.

Fanta é “Orangenlemonade”; laranja é “Sinasaapel” (laranja da China, na Dinamarca)

“Bonito”, escrito na blusa de uma menina.

Herd = Schaf + Schaf =... / Herde?

“Das Ausland fängt nicht an der Grenze, sondern in unseren Köpfen” (“O estrangeiro não começa na fronteira, mas em nossas cabeças”) [Campanha de educação anti-racista, com esboço do desenho de um rosto cujos olhos estão tapados pela bandeira alemã].

Das Land / das Ausland, die Ausländer, der Ausländer

an/fangen = começar

Ich fange di Kurse an / Er fängt di Kurse an [ eu começo o curso / ele começa...

Nicht…, sondern

Nicht hier, sondern da [informe sobre onde jogar o lixo: aqui não; lá.]

1.8.1993 “Brasilien: ein Gesellschaft treibt an Selbstmord” [ Brasil: uma sociedade à deriva rumo ao suicídio” ] O título da matéria longa sobre o Brasil vem de declarações de psicanalistas. A chamada: massacre de mais oito meninos de rua, no Rio de Janeiro. Deu no jornal Die Zeit. E aproveitaram para puxar á lembrança toda a crise: PC Farias, Collor, “fuga” dos assassinos de Chico Mendes, Weltidol [ídolo mundial, etc.] O tom era catastrófico: crise geral e ruína da democracia. Citam o deputado Bolso...., que clama por uma Diktatur, sem se lembrar de que ele é milico. Os generais estão quietos, mas até quando? E (os alemães) também se escandalizam com a greve da Polícia Federal.

No mesmo jornal, uma boa notícia sobre o Brasil: uso de plantas para limpar água de rio. Mas... relacionam isso com o cólera – e o projeto tem alemães como cabeças. [Essa data anotada é o dia em que li o jornal, mas a edição é do dia anterior, 30 de julho de 1993. Hoje em dia disponível de alguma forma online em: https://www.zeit.de/1993/31/eine-gesellschaft-treibt-zum-selbstmord/seite-2]

 




TRINTA E DOIS ANOS DEPOIS E ESTAMOS AINDA E SEMPRE ENCARREGADOS DE DESTRUIR AS SEMENTES DO MAL, AS FORÇAS OBSCURAS. SEM ANISTIA.