Por
muitos anos, Heck era para nós o J. N. Heck, o tradutor do primeiro livro de
Habermas para o português: Conhecimento e
interesse. Quando fiquei sabendo que esse tradutor tinha trabalhado como
advogado na Alemanha, respeitei mais sua capacidade, antes mesmo de conhecê-lo
pessoalmente.
Aí, por volta de 1995, com a criação de nossa graduação, em Uberlândia, intensificou-se o contato de nossos docentes com os de Goiânia, em diversas ocasiões, em bancas
e eventos acadêmicos. Quando o mestrado da UFG começou a funcionar, eu fui
convidado para integrar o corpo docente de lá, o que não foi possível por
razões pessoais e, sobretudo, por compromissos na UFU – inclusive a criação de
nosso programa de pós, prometido para 2005 e concretizado logo depois.
Mantivemos
por uns tempos o projeto de criar um doutorado consorciado de filosofia no
Brasil Central, que reuniria UnB, UFG e UFU. Essa tríplice aliança não vingou, como tal, mas inspirou
extensa colaboração. Por exemplo, a revista Philosophos, que contava em seu
conselho editorial com docentes das três universidades, inclusive Heck e eu; lá
demos pareceres, publicamos algum artigo e nos encarregamos
alternadamente da edição de cada número.
Guardo
uma foto da banca de mestrado que arguiu e aprovou Maria do Socorro Ramos
Militão: os professores Heck, Joel P. de Ulhoa e eu. Isso foi na UFG, em 2003;
temas da filosofia política de Gramsci. E estive em outras duas bancas de orientandos dele, me parece.
Cotas.
Em algum momento de 2005 ou 2006, nossa seção sindical, Adufu, participou intensamente
do debate sobre cotas – ações afirmativas. Eu estava na diretoria - e um pouco antes também na chefia do Defil - e convidei
Heck para falar a favor dessa causa. Um colega da universidade de
Pelotas, convidado por outras instâncias, pronunciou-se contra essa política. Dois gaúchos,
portanto, no confronto.
Heck
começou sua defesa com motivos da doutrina jurídica, argumentos liberais e
pragmáticos. O que interessa aqui, nesta homenagem póstuma, é destacar um
testemunho original do colega, sempre tão firme e incisivo. Heck disse que
defendia as cotas raciais por uma experiência de sua infância no sul do Brasil.
Sua família, de origem alemã, era educada e controlada com muito rigor e
rigidez. O patriarca não queria que seus filhos fossem visitar ou frequentar
uma certa vila onde viviam trabalhadores negros e mestiços. Não deviam se
misturar. Um dia, nosso colega Heck desobedeceu seu velho e foi escondido
espiar os “brasileiros”. Voltou chocado. Mudaria para sempre sua opinião sobre
as diferenças étnicas e os falsos argumentos que buscam manter a discriminação
e a desigualdade. Onde estava a originalidade desse episódio? É que o jovem
Heck viu e relatou em casa o seguinte: os outros vivem melhor do que nós, comem
melhor, são mais felizes e alegres... Foi um nó na cabeça do velho
preconceituoso. E o relato disso incomoda universitários egoístas.
A
essas alturas, já sabíamos seu nome do meio: Nicolau. O tradutor de Erkenntnis und Interesse era, por
extenso, José Nicolau Heck. E esse professor workaholic voltaria a tratar de temas habermasianos, por exemplo em
seu livro Ensaios de filosofia politica e
do direito – Habermas, Rousseau, Kant (UCG, 2009). Sua discussão com os
autores, elencados no subtítulo, faz todo o sentido, pois Kant dava a matriz
epistemológica daquela obra de 1968, ainda dentro do paradigma da reflexão (com
um feliz argumento transcendental, inclusive: interesse emancipatório da
humanidade). Guardo com carinho meu exemplar desse livro de Heck, autografado
no lançamento.
Duas
observações sobre “teoria”. Heck era direto, quando expunha suas teses em
eventos. Enunciava de saída suas convicções, sem enrolar a audiência com
prolegômenos. Depois, claro, fundamentava sua defesa no melhor estilo
acadêmico. Guardo de dois eventos – um na UFG e outro da Anpof, eu acho – as seguintes
afirmações dele que pesquei ao passar por um anfiteatro lotado, quando eu ia
procurar meus gatos pingados para expor minha comunicação, numa sala menor. Primeira: “as
melhores teorias políticas são aquelas que partem do pressuposto de que o homem
é mau. Maquiavel, Hobbes, Carl Schmitt, por exemplo”; segunda: “Marx não tem
uma teoria política, pois falta a ele uma teoria do Estado”. Perfeito, na
mosca. Eu mesmo viria a afirmar – carregado de razão e estressado pela tarefa
de continuar a teoria crítica – que Marx não elaborou uma teoria da crise. Sobrou
para nós. Isso e aquilo.
Evento
na Paraíba, 80 anos de Habermas. Ajudei a organizar esse evento encabeçado pelo
nobre colega Edmilson Azevedo. Montei uma mesa redonda com os colegas Osvaldo Freitas
e Roberto Gomes. E convidei o Professor Heck, que se prontificou. Foi e se
sentiu muito prestigiado entre os feras de sua (nossa) geração: Roaunet,
Barbara Freitag, Flávio B. Siebeneichler, dentre outros...grisalhos. Heck não
escondia seu entusiasmo durante o evento e sua gratidão em seguida. Aquele foi
o maior evento realizado no Brasil, em homenagem a um autor que ele ajudou a
divulgar e desenvolver. (E é claro que eu me senti bem ao retribuir, assim,
tantas gentilezas e oportunidades providenciadas pelo colega Heck, que agora
nos deixa com saudades e encargos).
Em
2010, convidei Heck a prefaciar o livro Direito
e democracia, que organizei junto com Osvaldo e Roberto Gomes, financiado
pela Fapemig. À altura, Heck já estava fazendo exames de coração e pretendia
pela primeira vez na vida levar a sério o estresse e diminuir os encargos. Em
uma mensagem – quando teve que adiar a resposta e se desculpar – ele dizia que
o terrível seria tomar dois comprimidos por dia até o fim da vida. E esse fim
veio agora há pouco, dia 8 de junho.
Heck
trabalhava muito, até demais, diria seu médico. Quando se aposentou na federal
de Goiás, assumiu a coordenação de dois programas de pós-graduação na Católica.
Mas, de novo, ele veio com uma inteligente observação, meio arrevesada, sobre
os goianos. Não, ele disse, não é que os goianos não gostem de trabalhar; eles
trabalham tanto quanto os outros, mas quando estão de folga, em volta de uma
mesa de bar, um churrasco, uma pamonhada... aí ninguém fala de serviço. E Heck
gostava dessa pausa, dessa libertação provisória do trabalho, tantas vezes
prometida pela ficção e por teorias revolucionárias.
Gostei
muito de ouvir dele essa declaração, pois conheço muito bem Goiás e os goianos.
Essa lembrança me leva a uma outra, que confirma a visão de Heck. Um dia, que
não consigo agora indicar com precisão, estávamos na casa do antropólogo Mário
“Animal” Arruda a assar um enorme peixe. Ele aprendera com os índios a testar o
ponto do cozimento quebrando o rabo do dourado, que devia sobrar para fora do
embrulho de folha de banana ou de alumínio. E era bom que demorasse, pois
bebida não faltava no aniversario dele. E a prosa era boa. Além do irmão dele,
o poeta Arruda, o Jordino Marques, o José Ternes, talvez o Darci Accorsi e mais alguns importantes filósofos e
antropólogos do conceituado IGPA. Já não me lembro de todos que estavam lá, mas
certamente faziam parte da turma de Heck. Falava-se de tudo, menos de...
trabalho acadêmico. Não era hora. Tantas histórias.
Certa
vez, eu contava a alguém sobre “nosso grupo” de pós-graduandos na UFRGS, quando
percebi uma discreta careta de espanto. Sim, eu repeti, nós formávamos um
grupo, uma geração – com certa coesão e relevância. Em outros casos, a gente só
vem a saber que participou de um coletivo tempos depois. É o caso do
envolvimento de nossos colegas da UFU com os goianos da UFG e, em certo grau,
com os de Brasília. Como na anedota da busca de um tesouro no quintal que
resultou em uma colheita melhor de nagôs e legumes na safra seguinte. O que
conseguimos nas três instituições – que tiveram a sorte de contar com o ânimo
do Professor Heck – valia ouro e continua a trazer frutos para as novas
gerações de um país que precisa pensar de forma consequente, o que faz parte
das “condições de possibilidade” da emancipação.
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Prof. Bento
Itamar Borges
Julho
de 2019
Um comentário:
Bento Itamar foi meu professor na graduação. Através dele conheci os frankfurtianos. Maria do Socorro foi minha aluna no Ensino Médio. Feliz aqui pelo reencontro. Beijo e abraço fraternos!
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