terça-feira, 23 de julho de 2019

J. N. Heck - homenagem póstuma




Por muitos anos, Heck era para nós o J. N. Heck, o tradutor do primeiro livro de Habermas para o português: Conhecimento e interesse. Quando fiquei sabendo que esse tradutor tinha trabalhado como advogado na Alemanha, respeitei mais sua capacidade, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. 

Aí, por volta de 1995, com a criação de nossa graduação, em Uberlândia, intensificou-se o contato de nossos docentes com os de Goiânia, em diversas ocasiões, em bancas e eventos acadêmicos. Quando o mestrado da UFG começou a funcionar, eu fui convidado para integrar o corpo docente de lá, o que não foi possível por razões pessoais e, sobretudo, por compromissos na UFU – inclusive a criação de nosso programa de pós, prometido para 2005 e concretizado logo depois.

Mantivemos por uns tempos o projeto de criar um doutorado consorciado de filosofia no Brasil Central, que reuniria UnB, UFG e UFU. Essa tríplice aliança não vingou, como tal, mas inspirou extensa colaboração. Por exemplo, a revista Philosophos, que contava em seu conselho editorial com docentes das três universidades, inclusive Heck e eu; lá demos pareceres, publicamos algum artigo e nos encarregamos alternadamente da edição de cada número.

Guardo uma foto da banca de mestrado que arguiu e aprovou Maria do Socorro Ramos Militão: os professores Heck, Joel P. de Ulhoa e eu. Isso foi na UFG, em 2003; temas da filosofia política de Gramsci. E estive em outras duas bancas de orientandos dele, me parece. 

Cotas. Em algum momento de 2005 ou 2006, nossa seção sindical, Adufu, participou intensamente do debate sobre cotas – ações afirmativas. Eu estava na diretoria - e um pouco antes também na chefia do Defil - e convidei Heck para falar a favor dessa causa. Um colega da universidade de Pelotas, convidado por outras instâncias, pronunciou-se contra essa política. Dois gaúchos, portanto, no confronto.

Heck começou sua defesa com motivos da doutrina jurídica, argumentos liberais e pragmáticos. O que interessa aqui, nesta homenagem póstuma, é destacar um testemunho original do colega, sempre tão firme e incisivo. Heck disse que defendia as cotas raciais por uma experiência de sua infância no sul do Brasil. 

Sua família, de origem alemã, era educada e controlada com muito rigor e rigidez. O patriarca não queria que seus filhos fossem visitar ou frequentar uma certa vila onde viviam trabalhadores negros e mestiços. Não deviam se misturar. Um dia, nosso colega Heck desobedeceu seu velho e foi escondido espiar os “brasileiros”. Voltou chocado. Mudaria para sempre sua opinião sobre as diferenças étnicas e os falsos argumentos que buscam manter a discriminação e a desigualdade. Onde estava a originalidade desse episódio? É que o jovem Heck viu e relatou em casa o seguinte: os outros vivem melhor do que nós, comem melhor, são mais felizes e alegres... Foi um nó na cabeça do velho preconceituoso. E o relato disso incomoda universitários egoístas.

A essas alturas, já sabíamos seu nome do meio: Nicolau. O tradutor de Erkenntnis und Interesse era, por extenso, José Nicolau Heck. E esse professor workaholic voltaria a tratar de temas habermasianos, por exemplo em seu livro Ensaios de filosofia politica e do direito – Habermas, Rousseau, Kant (UCG, 2009). Sua discussão com os autores, elencados no subtítulo, faz todo o sentido, pois Kant dava a matriz epistemológica daquela obra de 1968, ainda dentro do paradigma da reflexão (com um feliz argumento transcendental, inclusive: interesse emancipatório da humanidade). Guardo com carinho meu exemplar desse livro de Heck, autografado no lançamento.

Duas observações sobre “teoria”. Heck era direto, quando expunha suas teses em eventos. Enunciava de saída suas convicções, sem enrolar a audiência com prolegômenos. Depois, claro, fundamentava sua defesa no melhor estilo acadêmico. Guardo de dois eventos – um na UFG e outro da Anpof, eu acho – as seguintes afirmações dele que pesquei ao passar por um anfiteatro lotado, quando eu ia procurar meus gatos pingados para expor minha comunicação, numa sala menor. Primeira: “as melhores teorias políticas são aquelas que partem do pressuposto de que o homem é mau. Maquiavel, Hobbes, Carl Schmitt, por exemplo”; segunda: “Marx não tem uma teoria política, pois falta a ele uma teoria do Estado”. Perfeito, na mosca. Eu mesmo viria a afirmar – carregado de razão e estressado pela tarefa de continuar a teoria crítica – que Marx não elaborou uma teoria da crise. Sobrou para nós. Isso e aquilo.

Evento na Paraíba, 80 anos de Habermas. Ajudei a organizar esse evento encabeçado pelo nobre colega Edmilson Azevedo. Montei uma mesa redonda com os colegas Osvaldo Freitas e Roberto Gomes. E convidei o Professor Heck, que se prontificou. Foi e se sentiu muito prestigiado entre os feras de sua (nossa) geração: Roaunet, Barbara Freitag, Flávio B. Siebeneichler, dentre outros...grisalhos. Heck não escondia seu entusiasmo durante o evento e sua gratidão em seguida. Aquele foi o maior evento realizado no Brasil, em homenagem a um autor que ele ajudou a divulgar e desenvolver. (E é claro que eu me senti bem ao retribuir, assim, tantas gentilezas e oportunidades providenciadas pelo colega Heck, que agora nos deixa com saudades e encargos).

Em 2010, convidei Heck a prefaciar o livro Direito e democracia, que organizei junto com Osvaldo e Roberto Gomes, financiado pela Fapemig. À altura, Heck já estava fazendo exames de coração e pretendia pela primeira vez na vida levar a sério o estresse e diminuir os encargos. Em uma mensagem – quando teve que adiar a resposta e se desculpar – ele dizia que o terrível seria tomar dois comprimidos por dia até o fim da vida. E esse fim veio agora há pouco, dia 8 de junho.

Heck trabalhava muito, até demais, diria seu médico. Quando se aposentou na federal de Goiás, assumiu a coordenação de dois programas de pós-graduação na Católica. Mas, de novo, ele veio com uma inteligente observação, meio arrevesada, sobre os goianos. Não, ele disse, não é que os goianos não gostem de trabalhar; eles trabalham tanto quanto os outros, mas quando estão de folga, em volta de uma mesa de bar, um churrasco, uma pamonhada... aí ninguém fala de serviço. E Heck gostava dessa pausa, dessa libertação provisória do trabalho, tantas vezes prometida pela ficção e por teorias revolucionárias.

Gostei muito de ouvir dele essa declaração, pois conheço muito bem Goiás e os goianos. Essa lembrança me leva a uma outra, que confirma a visão de Heck. Um dia, que não consigo agora indicar com precisão, estávamos na casa do antropólogo Mário “Animal” Arruda a assar um enorme peixe. Ele aprendera com os índios a testar o ponto do cozimento quebrando o rabo do dourado, que devia sobrar para fora do embrulho de folha de banana ou de alumínio. E era bom que demorasse, pois bebida não faltava no aniversario dele. E a prosa era boa. Além do irmão dele, o poeta Arruda, o Jordino Marques, o José Ternes, talvez o Darci Accorsi  e mais alguns importantes filósofos e antropólogos do conceituado IGPA. Já não me lembro de todos que estavam lá, mas certamente faziam parte da turma de Heck. Falava-se de tudo, menos de... trabalho acadêmico. Não era hora. Tantas histórias.

Certa vez, eu contava a alguém sobre “nosso grupo” de pós-graduandos na UFRGS, quando percebi uma discreta careta de espanto. Sim, eu repeti, nós formávamos um grupo, uma geração – com certa coesão e relevância. Em outros casos, a gente só vem a saber que participou de um coletivo tempos depois. É o caso do envolvimento de nossos colegas da UFU com os goianos da UFG e, em certo grau, com os de Brasília. Como na anedota da busca de um tesouro no quintal que resultou em uma colheita melhor de nagôs e legumes na safra seguinte. O que conseguimos nas três instituições – que tiveram a sorte de contar com o ânimo do Professor Heck – valia ouro e continua a trazer frutos para as novas gerações de um país que precisa pensar de forma consequente, o que faz parte das “condições de possibilidade” da emancipação.

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Prof. Bento Itamar Borges
Julho de 2019

Um comentário:

Weber Abrahão Júnior disse...

Bento Itamar foi meu professor na graduação. Através dele conheci os frankfurtianos. Maria do Socorro foi minha aluna no Ensino Médio. Feliz aqui pelo reencontro. Beijo e abraço fraternos!