- o ovo da serpente já estava no
ninho há muito tempo -
Isso aqui dá um bom roteiro para um documentário de curta-metragem. Do
tipo que começa leve e ingênuo, em tom de impressões turísticas e familiares.
Mas, acreditem: a paisagem diferente não me fez esquecer dos problemas e
compromissos com nosso Brasil precioso.
Ao organizar de novo minha biblioteca, consegui despachar, doar e
enviar para a cooperativa de reciclagem uns duzentos quilos de xerox, cadernos,
livros e outros papéis da gaveta, tipo “miscelânea”. Isso foi ontem, em
fevereiro de 2025. Na pasta com documentos e cartas entre este bolsista e o
DAAD – muitas assinadas pela simpática Dona Helga Wahre, encarregada de latinos
em geral – encontrei umas doze páginas manuscritas amareladas, de bloco de pequeno.
As notas registraram impressões iniciais, sobre paisagem, costumes e
curiosidades da língua alemã, desde o vôo de ida, pela Lufthansa, até a
instalação em Kassel e uma visita a uma família na Baviera. Mas o leitor poderá
se surpreender, ao final desta postagem de blog, com uma nota tristemente
premonitória para a política e a vida no Brasil. O ovo da serpente já estava no
ninho, um quarto de século antes. E o título da reportagem, que me pareceu
então exagerado – “Um país à deriva, rumo ao suicídio” – veio a ser válido para
nosso quadro histórico recente. Confiram, mas não percam o passeio que vem no
início. E é para “não perder” as notas em papel pequeno e amarelado que me dou
ao trabalho de transcrever e publicar o que se segue. Obrigado pela visita ao
nosso cerrado...
“22/7/1993 – São Paulo, quinta. Doze horas de espera e sono e preços
altos. Mais confusões entre Capes e Varig. Na passagem não consta que sou
bolsista Capes/DAAD. Com troca de ironias, consegui provar. A chefinha liberou
um quilo, aliás 41. Revista só para armas. Canivete vai.
Saímos de São Paulo às 22. Boeing
747-300, um Jumbo enorme. Viajamos na asa esquerda. Enorme asa; nada para ver.
Uma Sônia (Sonja?) viajou do lado, para provar que alemão é simpático. KV
deu-lhe um banho de vinho tinto por culpa de um filé mal passado. A moça se levantou,
ocupou outro banco e, no outro dia, mostrou sorriso. Escrevi pequeno bilhete
lamentando o ocorrido e a interrupção de um bom papo com mais espanhol que
alemão. De graça, psicanalisei KV... que, como prova final, ainda dormiu
atravessada em três bancos. Vôo sem escalas, devendo ter sobrevoado o Saara e
Argélia. Dormi mal, como em ônibus. Sede besta, bexiga cheia... balanços e onze
horas de ruídos das turbinas ao lado. Ficamos longe da tela, mas o filme era
ruim. Vários canais de música. Logo ouvi Debora Blando cantando Maçã [de Raul Seixas]: “O ciúme é só
vaidade; sofro, mas eu vou me libertar”.
23/7- sexta: Frankfurt a Kassel.
- Belo pouso! O carrinho da
bagagem é massa, com freio, três rodas. Beleza! WC, Geld Wechsel [trocar
dinheiro], informações sobre ir para a Hauptbahnhof [estação central]. “Ich
habe ein paar Schwein gekauft...” [comprei uma porção de ‘porcos’, ou seja,
fiquei rodando em volta uns minutos, feito peru bêbado...]. Como comprar o
bilhete do metrô? Alguns americanos também com dificuldade. O jeito é especular
aos transeuntes.
Grande coincidência. Ao tentar falar
com Ezat [palestino, amigo de um amigo], disquei sem o prefixo 0561, Kassel, e
atende uma moça portuguesa de Frankfurt, com certeza... Ora, pois! Puxou papo.
Os orelhões não devolvem troco. Aqui precisamos de bolso grande para passaporte
e moedas.
Metrô para a Hauptbahnhof (2,60
marcos). Ninguém pediu passagem.
Na fila da passagem de trens,
mulheres de Trinidad Tobago. Bela estação. E boa viagem para Kassel, com o trem
lento (100 km/h...) e barato (48,00). Um luxo para nós e era de 2. Klasse! Meu
pai ia gostar. Muita lavoura, inclusive de milho. Vacas, pombo, 2 cães pretos.
Cobrador super-educado, “Wie Sie wollen...”
[Como o Sr. quiser...] E educados vários que ajudaram a carregar as malas e
deram dicas. Só alguns bestas, como dois taxistas, que não quiseram carregar
nossas malas. “Piau” nos levou a “Auf dem Stützel” (15,00 marcos. Não mais.)
Ezat quer dizer “o homem que tem
tudo” e... empresta tudo ao amigo do amigo do amigo [...Felipe/
Alfredo/Bento...] Que Allah o proteja!
Sábado, 24. Bom sono. Banho quente, café.
Máquinas. Muitas máquina.
Máquinas demais. Na fazenda, uma corta o capim, o feno. Outra esparrama para
secar, outra faz uns rolos enormes para guardar para o inverno.
Qualquer obra de nada requer um
guindaste montado, enorme (Kran).
Muito gasto de energia elétrica.
Todos os fogões, torneiras, banheiros. E como aquecer uma fábrica, escola? As
casas tem tantas portas, para segurar o ar quente, com borrachas iguais às de
geladeira.
Muitos carros. Aí vem os avisos
no rádio: 3 km Stau, 23 km Stau
[congestionamento]. Wirklich! [ é
mesmo!] Todos tem carros. Carros novos e tratores antigos; velhos fazendeiros
mantem seus Fendt, Hanomag...
Nos Weiss: 1 moto Suzuki e 1 BMW
grandonas, que foram pelo Sr. Erwin reparadas, 1 Kadett 1200 do pai, 1 Kadett
de 22 anos do Stefan e uma Kombi Camping, diesel, ótima, umas 5 ou 6
bicicletas.
Desperdício: Mercedes como táxi.
Já peguei 2.
Ah! A Kombi dos Weiss já foi a
muitos países, inclusive Grécia, Espanha, Schotland (...) Tio Juca tinha que
ver:
- cama embaixo e no teto, que
levanta (como o “dragão”no livro do Cortázar), são duas de casal;
- cama vira sofá para 3 mais dois
banquinhos;
- mesa;
- fogão 2 bocas (gás) + pia com
água bombeada de reservatório debaixo do sofá-cama + geladeira (gás, bateria ou
energia)
- motor diesel (e bom!)
- muitos armários, tudo dobrável
e prático.
- leva bikes atrás
(...) Eindrücken [impressões]
2/8/93: Uns caras pescando no
Meno, Frankfurt. Grandes caniços, vermelhos (...) na espera. Vi peixe pulando
no canal de Lüneburg. Peixinho morto em Brüchlim, Ottobeuren, no Schachenbad
(?) um lago onde Marcus e Andrea estreavam seu “Tornado” sob olhares da mãe
Marion e do pai, filho de Frau Weinald e Herr Georg. (...)
Não só há bichos nas florestas de
Bienenbüttel, como é permitida a caça, com armas. O caçador passa por um curso
complicado, que inclui os hábitos dos bichos e como reconhecer uma fêmea, que
em certas épocas não devem ser abatidas. Mas é sacanagem demais. O caçador fica
em uma cabine elevada [jirau], com janelas de vidro. Em outra clareira, tiveram
a paciência de plantar milho e outras ervas, entre cercas de tela baixa, que
obrigam os bichos a irem em direção ao caçador que se aboletou na tal cadeira
de espera, camuflada...
Vidro moído usado para pavimentar
ruas, com brita. Aí o sapato não dura nada...
Carvalho = Eichel
Tília = Linden (unten den...)
Primeiro dia em Memmingen:
comemos “Maultasche” no restaurante
Hoigata.
Hunde Namen [nomes pra cachorros]: Daki, Chico, Basil, Amor. E um
Katz [gato] Tapsi.
Fanta é “Orangenlemonade”;
laranja é “Sinasaapel” (laranja da China, na Dinamarca)
“Bonito”, escrito na blusa de uma
menina.
Herd = Schaf + Schaf =... /
Herde?
“Das Ausland fängt nicht an der
Grenze, sondern in unseren Köpfen” (“O estrangeiro não começa na fronteira, mas
em nossas cabeças”) [Campanha de educação anti-racista, com esboço do desenho
de um rosto cujos olhos estão tapados pela bandeira alemã].
Das Land / das Ausland, die Ausländer, der
Ausländer
an/fangen = começar
Ich fange di Kurse an / Er fängt
di Kurse an [ eu começo o curso / ele começa...
Nicht…, sondern
Nicht hier, sondern da [informe
sobre onde jogar o lixo: aqui não; lá.]
1.8.1993 “Brasilien: ein
Gesellschaft treibt an Selbstmord” [ Brasil:
uma sociedade à deriva rumo ao suicídio” ] O título da matéria longa sobre
o Brasil vem de declarações de psicanalistas. A chamada: massacre de mais oito
meninos de rua, no Rio de Janeiro. Deu no jornal Die Zeit. E aproveitaram para
puxar á lembrança toda a crise: PC Farias, Collor, “fuga” dos assassinos de
Chico Mendes, Weltidol [ídolo mundial, etc.] O tom era catastrófico: crise
geral e ruína da democracia. Citam o deputado
Bolso...., que clama por uma Diktatur,
sem se lembrar de que ele é milico. Os generais estão quietos, mas até quando? E
(os alemães) também se escandalizam com a greve da Polícia Federal.
No mesmo jornal, uma boa notícia
sobre o Brasil: uso de plantas para limpar
água de rio. Mas... relacionam isso com o cólera – e o projeto tem alemães
como cabeças. [Essa data anotada é o dia em que li o jornal, mas a edição é do
dia anterior, 30 de julho de 1993. Hoje em dia disponível de alguma forma
online em: https://www.zeit.de/1993/31/eine-gesellschaft-treibt-zum-selbstmord/seite-2]