domingo, 30 de julho de 2023

DON JUAN, ÓPERA DE MOZART

 Em 1983, durante curso com Prof. Álvaro Valls,UFRGS,  tomo contato com essa ópera, a partir dos estudos dele sobre Diário do sedutor, escrito por Kierkegaard (Adorno, que era nosso assunto, dedicou-se ao dinamarquês em sua tese, A construção do estético).


Em 1991 ou 92, Porto Alegre, estudava alemão no Instituto Goethe, cuja biblioteca descartou um volume pouco lido e raramente emprestado, sobre essa ópera de Mozart, com o texto do libreto e outras referências. 

Em 2018, por aí, traduzi o que se segue e postei em um site que já não existe (bentoxvii.com). E agora encontrei por acaso no computer e resolvo deixar aqui. Fiquei um pouco chateado ao enviar um email ao colega Valls... que não deus os likes esperados. 


Quem quiser que procure imagens e sons dessa ópera famosa, com tempo para fruir lá e cá.

 

Origem e primeiras apresentações do “Don Giovanni”

(Lorenzo da Ponte)

 

Mozart, Martini[1] e Salieri[2] me pediram ao mesmo tempo um libreto. Eu amava e tratava com atenção todos eles e esperava dos três que nos fizessem esquecer as últimas óperas, que estavam em queda, e que pudessem aumentar a fama de meu novo teatro. Eu pensei comigo se seria possível tranquilizar todos eles, ou seja, escrever os três libretos de uma vez. Salieri não esperava de mim nenhum drama original; ele havia escrito em Paris a música para ‘Tarar’[3] e queria ter a ópera transposta para o italiano, ou seja, uma tradução livre. Mozart e Martini deixaram exclusivamente comigo a escolha. Eu escolhi para Mozart o ‘Don Giovanni’, uma coisa que lhe agradou imensamente, e para Martini, ‘A árvore de Diana’.[4] Era um material compatível, adequado à suas melodias suaves, que todos sentiam profundamente mas pouquíssimos podiam imitar. Assim que eu localizei esses três materiais, fui até o Imperador[5] e discuti com ele que eu queria levar adiante as três óperas ao mesmo tempo. “Isso você não vai conseguir”, exclamou ele. “Talvez não”, retruquei eu, “mas vou tentar. À noite trabalho para Mozart e penso enquanto isso no ‘Inferno’ de Dante. De manhã, escrevo para Martini e isso é tão bom quanto se eu estudasse Petrarca. À tarde, escrevo para Salieri, o que será meu [Torquato] Tasso”. Ele achou meu paralelo muito bonito.  Assim que cheguei em casa, comecei a escrever. E trabalhei nisso doze horas, uma depois da outra, tendo uma garrafa de [vinho] Tokay à minha direita, o tinteiro ao centro da mesa, um maço de cigarro de Sevilha à esquerda. Uma bela menina de dezesseis anos – eu devia tê-la amado apenas como a uma filha, mas... sabe como é... – morava na casa com a mãe, que cuidava das lides domésticas. A pequena vinha para perto, assim que eu tocava uma sineta, e eu fazia isso, para ser franco, com grande frequência e notei prontamente e de modo especial que meu fogo poético começou a esfriar. Ela me trazia ora um biscoito, ora uma taça de café ou simplesmente seu lindo rostinho, sempre alegre, sempre sorridente, que parecia conseguir inspirar intuições poéticas e ideias espirituosas. Eu continuei a produzir por doze horas ininterruptas durante oito semanas, e o tempo todo permaneceu ela por perto no quarto, ocupada com um livro ou com um trabalho manual, para me apressar, caso eu só balançasse suavemente o sino. Enquanto se mantinha sentada perto de mim, não se mexia, não abria a boca, me observava com firmeza, sem contrair os cílios, sorria suavemente, suspirava e engolia muitas vezes com uma pequena lágrima. Em resumo, a menina foi a musa para essas três óperas e permaneceu como tal a partir daí em todos os versos que escrevi no decurso dos seis anos seguintes. De início, permiti a ela essas visitas com muita frequência, mas tive que reduzi-las por fim, para não perder muito tempo com paradas para namorar, no que ela concordou perfeitamente.   Entrementes, no primeiro dia, entre o vinho Tokay[6], o tabaco de Sevilha, o café, o sino e a jovem musa, eu escrevi as duas primeiras cenas de ‘Don Giovanni’, bem como duas de ‘A árvore de Diana’ e mais da metade de ‘Tarar’, título que eu mudei para ‘Assur’. Pela manhã, levei essas cenas aos três compositores, que mal consideravam possível o que eles liam com seus próprios olhos. Em sessenta e três dias, estavam totalmente prontas as duas primeiras e quase dois terços da última.

A árvore de Diana’ foi exibida primeiro. O sucesso foi extraordinário e no mínimo igual ao de ‘Cosa rara’.

Logo depois da première, precisei viajar a Praga; lá o ‘Don Giovanni’ de Mozart teve que ser oferecido pela primeira vez ao público, para celebrar a chegada da princesa da Toscana. Eu fiquei oito dias, para introduzir os atores que participaram da peça. Mas ainda antes da première eu tive que retornar a Viena, por causa de uma carta de apelo enviada por Salieri: a ‘Assur’ deveria – sendo verdade ou não – ser encenada para o iminente casamento do Duque Franz. O Imperador havia recomendado que me chamassem de volta.

Eu viajei direto, então, dia e noite; todavia, a meio caminho eu fiquei cansado e me deitei para dormir por alguns minutos numa pousada. Quando os cavalos estavam prontos, alguém me acordou e eu pulei da cama ainda sonolento escada abaixo para a carruagem e parti. Logo chegamos a uma fronteira de aduana, onde exigiram de mim uma pequena soma. Eu enfiei a mão no bolso – e não encontrei um único soldo na carteira. De manhã estiveram ali cinquenta moedas[7] , que Guardasoni, o impresário de Praga, pagou como honorários pela ópera. Meu primeiro pensamento foi que eu tivesse perdido o dinheiro na cama, pois eu deitei de roupas. Viajei de volta, sem encontrar nada na cama. O dono e a dona da pousada, pessoas verdadeiramente adoráveis, ajuntam todo o pessoal, procuram, perguntam, ameaçam; contudo, cada um diz que não teve nada que ver com essa cama. Aí gritou uma menina de no máximo cinco anos: “Mama, quando o senhor partiu, a Caterina arrumou a cama, eu vi.” A dona do negócio pediu que Caterina se despisse e os cinquenta zechinos estavam debaixo do lenço que lhe cobria o peito. Eu estava tão feliz com aquilo que pedi à boa gente que perdoasse o furto da criada. Eu perdi duas horas com essa história e então viajei sem nova troca de cavalos até Viena e cheguei lá no dia seguinte. Eu mandei notícias para Salieri e me pus a trabalhar; dois dias depois, ‘Assur’ estava pronta. O sucesso no teatro foi tão grande, que eu fiquei muito tempo em dúvida, sobre qual das três óperas -- tanto pela música, quanto pelo texto – seria a mais perfeita. 

Eu não vi, por conseguinte, a apresentação de ‘Don Giovanni’ em Praga. Mozart, no entanto, me informou imediatamente sobre o maravilhoso sucesso e Guardasoni escreveu: “Viva Da Ponte, viva Mozart! Todos os empresários, todos os artistas devem elogiá-los. Enquanto ambos estiverem vivos, ninguém saberá o que seja miséria no teatro.” O imperador mandou me chamar, me louvou à sua maneira amigável, acima da multidão, me presenteou com mais cem moedas e disse que ele arde de vontade de ver o ‘Don Giovanni’. Mozart voltou e deu as partituras imediatamente aos copistas, que se apressaram em transcrever dali as vozes, pois o Imperador tinha que seguir para guerra contra a Turquia. O ‘Don Giovanni’ foi apresentado e... não agradou. Todos, exceto Mozart, achavam que faltava algo. Foram feitos acréscimos, as árias foram substituídas e a ópera foi encenada de novo – o ‘Don Giovanni’ não agradou. E o que disse o imperador sobre isso? “A ópera é divina, talvez mais bonita que ‘Figaro’. Mas ela não é comida para os dentes de meus vienenses”. Isso eu contei para Mozart. Ele replicou sem a mínima consternação: “Deixemos que eles tenham tempo para mastigar”[8]. E ele não se decepcionou. Eu me preocupei com sua piscadela, significando que a ópera seria repetida muitas vezes. À cada apresentação, crescia o aplauso, a cada dia os senhores de Viena com péssimos dentes encontravam o sabor nessa ópera, percebiam a beleza e davam ao ‘Don Giovanni’ o posto que lhe era devido: eles a consideraram dali em diante uma das mais belas óperas jamais encenadas em um teatro.    

Fonte: Da Ponte, Lorenzo, “Entstehung und erste Aufführungen des ‘Don Giovanni”, in: MOZART, Wolfgang Amadeus. Don Giovanni. Texten, Materialien, Kommentare; Attila Csampai und Dietmar Holland (eds.) Hamburg, Rohwohlt Taschenbuch Verlag GmbH, 1981, p. 190-194

TRADUÇAO BENTO ITAMAR BORGES 

[1] Vicente Martín y Soler (Martini) nasceu em 1754 em Valência e morreu em 1806 em São Petersburgo. Escreveu para a ópera de Viena em 1786 a bem sucedida ópera “Uma cosa rara”(libreto de Da Ponte), que cita o tema “Oh quanto un si bel giubilo” retirado do segundo final de Mozart para o ‘Don Giovanni’.

[2] Antonio Salieri (1750-1825) compositor italiano de óperas. Permaneceu desde 1774 em Viena e foi de 1788 a 1790 o mestre da capela real e concorrente de Mozart. A afirmação espalhada de que Salieri teria envenenado Mozart pertence ao reino das lendas.

[3] A ópera ‘Tarar’, com texto de Beaumarchais, teve sua estréia em 8 de junho de 1787, em Paris e foi reelaborada um ano mais tarde por Da Ponte e Salieri em ‘Assur, Re d’Ormus’ [Assur, rei de Ormuz].

[4] Livro-texto conforme um modelo até então desconhecido (espanhol?). Estreia da ópera em Viena em 1.10.1787.

[5] O “Kaiser” referido é José II (1741-1790), filho de Maria Theresia, que reinou a partir de 1780.

[6] Vinho Tokay ou tokaji é uma bebida doce, oriunda da região da Hungria com esse nome, desde castas específicas de uvas e que foi objeto de disputa para registro de apelação, bem antes do vinho do Porto. Famoso entre artistas e reis, desde o início do século XVIII.

[7] Zecchino: moeda de ouro corrente à época. NT

[8] Mastigar (kauen) e não, comprar (kaufen); erro de digitação no livro de onde copiamos o texto. NT

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