Em 1983, durante curso com Prof. Álvaro Valls,UFRGS, tomo contato com essa ópera, a partir dos estudos dele sobre Diário do sedutor, escrito por Kierkegaard (Adorno, que era nosso assunto, dedicou-se ao dinamarquês em sua tese, A construção do estético).
Em 1991 ou 92, Porto Alegre, estudava alemão no Instituto Goethe, cuja biblioteca descartou um volume pouco lido e raramente emprestado, sobre essa ópera de Mozart, com o texto do libreto e outras referências.
Em 2018, por aí, traduzi o que se segue e postei em um site que já não existe (bentoxvii.com). E agora encontrei por acaso no computer e resolvo deixar aqui. Fiquei um pouco chateado ao enviar um email ao colega Valls... que não deus os likes esperados.
Quem quiser que procure imagens e sons dessa ópera famosa, com tempo para fruir lá e cá.
Origem e primeiras
apresentações do “Don Giovanni”
(Lorenzo da Ponte)
Mozart, Martini[1]
e Salieri[2]
me pediram ao mesmo tempo um libreto. Eu amava e tratava com atenção todos eles
e esperava dos três que nos fizessem esquecer as últimas óperas, que estavam em
queda, e que pudessem aumentar a fama de meu novo teatro. Eu pensei comigo se
seria possível tranquilizar todos eles, ou seja, escrever os três libretos de
uma vez. Salieri não esperava de mim nenhum drama original; ele havia escrito
em Paris a música para ‘Tarar’[3]
e queria ter a ópera transposta para o italiano, ou seja, uma tradução livre. Mozart
e Martini deixaram exclusivamente comigo a escolha. Eu escolhi para Mozart o ‘Don Giovanni’, uma coisa que lhe agradou
imensamente, e para Martini, ‘A árvore de
Diana’.[4]
Era um material compatível, adequado à suas melodias suaves, que todos sentiam
profundamente mas pouquíssimos podiam imitar. Assim que eu localizei esses três
materiais, fui até o Imperador[5]
e discuti com ele que eu queria levar adiante as três óperas ao mesmo tempo. “Isso
você não vai conseguir”, exclamou ele. “Talvez não”, retruquei eu, “mas vou
tentar. À noite trabalho para Mozart e penso enquanto isso no ‘Inferno’ de Dante. De manhã, escrevo
para Martini e isso é tão bom quanto se eu estudasse Petrarca. À tarde, escrevo
para Salieri, o que será meu [Torquato] Tasso”. Ele achou meu paralelo muito
bonito. Assim que cheguei em casa,
comecei a escrever. E trabalhei nisso doze horas, uma depois da outra, tendo
uma garrafa de [vinho] Tokay à minha direita, o tinteiro ao centro da mesa, um
maço de cigarro de Sevilha à esquerda. Uma bela menina de dezesseis anos – eu
devia tê-la amado apenas como a uma filha, mas... sabe como é... – morava na
casa com a mãe, que cuidava das lides domésticas. A pequena vinha para perto,
assim que eu tocava uma sineta, e eu fazia isso, para ser franco, com grande
frequência e notei prontamente e de modo especial que meu fogo poético começou
a esfriar. Ela me trazia ora um biscoito, ora uma taça de café ou simplesmente
seu lindo rostinho, sempre alegre, sempre sorridente, que parecia conseguir
inspirar intuições poéticas e ideias espirituosas. Eu continuei a produzir por doze
horas ininterruptas durante oito semanas, e o tempo todo permaneceu ela por
perto no quarto, ocupada com um livro ou com um trabalho manual, para me
apressar, caso eu só balançasse suavemente o sino. Enquanto se mantinha sentada
perto de mim, não se mexia, não abria a boca, me observava com firmeza, sem
contrair os cílios, sorria suavemente, suspirava e engolia muitas vezes com uma
pequena lágrima. Em resumo, a menina foi a musa para essas três óperas e
permaneceu como tal a partir daí em todos os versos que escrevi no decurso dos
seis anos seguintes. De início, permiti a ela essas visitas com muita
frequência, mas tive que reduzi-las por fim, para não perder muito tempo com paradas
para namorar, no que ela concordou perfeitamente. Entrementes,
no primeiro dia, entre o vinho Tokay[6],
o tabaco de Sevilha, o café, o sino e a jovem musa, eu escrevi as duas
primeiras cenas de ‘Don Giovanni’,
bem como duas de ‘A árvore de Diana’
e mais da metade de ‘Tarar’, título que
eu mudei para ‘Assur’. Pela manhã, levei
essas cenas aos três compositores, que mal consideravam possível o que eles
liam com seus próprios olhos. Em sessenta e três dias, estavam totalmente
prontas as duas primeiras e quase dois terços da última.
‘A árvore de Diana’
foi exibida primeiro. O sucesso foi extraordinário e no mínimo igual ao de ‘Cosa rara’.
Logo depois da première, precisei viajar a Praga; lá o ‘Don Giovanni’ de Mozart teve que ser
oferecido pela primeira vez ao público, para celebrar a chegada da princesa da
Toscana. Eu fiquei oito dias, para introduzir os atores que participaram da peça.
Mas ainda antes da première eu tive que retornar a Viena, por causa de uma carta
de apelo enviada por Salieri: a ‘Assur’ deveria
– sendo verdade ou não – ser encenada para o iminente casamento do Duque Franz.
O Imperador havia recomendado que me chamassem de volta.
Eu viajei direto, então, dia e noite; todavia, a meio caminho
eu fiquei cansado e me deitei para dormir por alguns minutos numa pousada.
Quando os cavalos estavam prontos, alguém me acordou e eu pulei da cama ainda
sonolento escada abaixo para a carruagem e parti. Logo chegamos a uma fronteira
de aduana, onde exigiram de mim uma pequena soma. Eu enfiei a mão no bolso – e
não encontrei um único soldo na carteira. De manhã estiveram ali cinquenta moedas[7]
, que Guardasoni, o impresário de
Praga, pagou como honorários pela ópera. Meu primeiro pensamento foi que eu tivesse
perdido o dinheiro na cama, pois eu deitei de roupas. Viajei de volta, sem
encontrar nada na cama. O dono e a dona da pousada, pessoas verdadeiramente
adoráveis, ajuntam todo o pessoal, procuram, perguntam, ameaçam; contudo, cada
um diz que não teve nada que ver com essa cama. Aí gritou uma menina de no
máximo cinco anos: “Mama, quando o senhor partiu, a Caterina arrumou a cama, eu
vi.” A dona do negócio pediu que Caterina se despisse e os cinquenta zechinos estavam debaixo do lenço que
lhe cobria o peito. Eu estava tão feliz com aquilo que pedi à boa gente que
perdoasse o furto da criada. Eu perdi duas horas com essa história e então
viajei sem nova troca de cavalos até Viena e cheguei lá no dia seguinte. Eu
mandei notícias para Salieri e me pus a trabalhar; dois dias depois, ‘Assur’ estava pronta. O sucesso no
teatro foi tão grande, que eu fiquei muito tempo em dúvida, sobre qual das três
óperas -- tanto pela música, quanto pelo texto – seria a mais perfeita.
Eu não vi, por conseguinte, a
apresentação de ‘Don Giovanni’ em
Praga. Mozart, no entanto, me informou imediatamente sobre o maravilhoso
sucesso e Guardasoni escreveu: “Viva Da Ponte, viva Mozart! Todos os
empresários, todos os artistas devem elogiá-los. Enquanto ambos estiverem
vivos, ninguém saberá o que seja miséria no teatro.” O imperador mandou me
chamar, me louvou à sua maneira amigável, acima da multidão, me presenteou com
mais cem moedas e disse que ele arde de vontade de ver o ‘Don Giovanni’. Mozart voltou e deu as partituras imediatamente aos
copistas, que se apressaram em transcrever dali as vozes, pois o Imperador
tinha que seguir para guerra contra a Turquia. O ‘Don Giovanni’ foi apresentado e... não agradou. Todos, exceto
Mozart, achavam que faltava algo. Foram feitos acréscimos, as árias foram
substituídas e a ópera foi encenada de novo – o ‘Don Giovanni’ não agradou. E o que disse o imperador sobre isso? “A
ópera é divina, talvez mais bonita que ‘Figaro’.
Mas ela não é comida para os dentes de meus vienenses”. Isso eu contei para
Mozart. Ele replicou sem a mínima consternação: “Deixemos que eles tenham tempo
para mastigar”[8]. E
ele não se decepcionou. Eu me preocupei com sua piscadela, significando que a ópera
seria repetida muitas vezes. À cada apresentação, crescia o aplauso, a cada dia
os senhores de Viena com péssimos dentes encontravam o sabor nessa ópera, percebiam
a beleza e davam ao ‘Don Giovanni’ o
posto que lhe era devido: eles a consideraram dali em diante uma das mais belas
óperas jamais encenadas em um teatro.
Fonte: Da
Ponte, Lorenzo, “Entstehung und erste Aufführungen des ‘Don Giovanni”, in:
MOZART, Wolfgang Amadeus. Don Giovanni. Texten,
Materialien, Kommentare; Attila Csampai und Dietmar Holland (eds.) Hamburg,
Rohwohlt Taschenbuch Verlag GmbH, 1981, p. 190-194
[1] Vicente
Martín y Soler (Martini) nasceu em 1754 em Valência e morreu em 1806 em São
Petersburgo. Escreveu para a ópera de Viena em 1786 a bem sucedida ópera “Uma
cosa rara”(libreto de Da Ponte), que cita o tema “Oh quanto un si bel giubilo”
retirado do segundo final de Mozart para o ‘Don
Giovanni’.
[2] Antonio
Salieri (1750-1825) compositor italiano de óperas. Permaneceu desde 1774 em
Viena e foi de 1788 a 1790 o mestre da capela real e concorrente de Mozart. A
afirmação espalhada de que Salieri teria envenenado Mozart pertence ao reino
das lendas.
[3] A
ópera ‘Tarar’, com texto de
Beaumarchais, teve sua estréia em 8 de junho de 1787, em Paris e foi
reelaborada um ano mais tarde por Da Ponte e Salieri em ‘Assur, Re d’Ormus’ [Assur, rei de Ormuz].
[4] Livro-texto
conforme um modelo até então desconhecido (espanhol?). Estreia da ópera em
Viena em 1.10.1787.
[5] O
“Kaiser” referido é José II (1741-1790), filho de Maria Theresia, que reinou a
partir de 1780.
[6]
Vinho Tokay ou tokaji é uma bebida doce, oriunda da região da Hungria com esse
nome, desde castas específicas de uvas e que foi objeto de disputa para
registro de apelação, bem antes do vinho do Porto. Famoso entre artistas e
reis, desde o início do século XVIII.
[7] Zecchino:
moeda de ouro corrente à época. NT
[8]
Mastigar (kauen) e não, comprar (kaufen); erro de digitação no livro de
onde copiamos o texto. NT
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