quarta-feira, 18 de maio de 2022

Um texto sobre Louise Bourgeois que traduzi em 1982

 


“Arte: Uma sensação de experiência feminina”

Uma sensação de experiência feminina – Invocações primitivas que vão além de um emaranhado de ismos




Louise Bourgeois é com certeza a artista menos conhecida que já expôs uma retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, uma honra normalmente reservada aos Picassos ou pelo menos aos Frank Stellas deste mundo. Ela tem quase 71 anos, é francesa, reside em Nova Iorque desde 1938, e é uma escultora madura sob qualquer definição concebível da palavra. Até bem recentemente, poucas pessoas queriam olhar para seu trabalho e seu reconhecimento era pequeno, pelo menos comparado com a fama que rodeava Louise Nevelson, aquela Abelha Rainha da arte irresistivelmente durável. Bourgeois não pertence a nenhum grupo e era uma solitária completa; seu trabalho parecia ter uma qualidade troglodítica estranha, como algo pálido debaixo de um tronco, o vulnerável produto da obsessão, mas com um ferrão na sua cauda.

Essa qualidade permanece, mas nesse período duas coisas mudaram seu status no mundo da arte. Uma foi o colapso da ideia de que a arte só tem um caminho, a trilha abstrata que avança para a história. Por isso vale a pena examinar o tipo idiossincrático de surrealismo tardio de Bourgeois. A segunda mudança, que a torna ainda mais interessante, foi o feminismo. O campo ao qual a obra de Borugeois retorna constantemente é a experiência feminina, localizada no corpo, sentida desde dentro. “Eu tento, disse ela a um entrevistador, referindo-se a um trabalho, representar uma mulher que está grávida. Ela tenta assustar, mas ela é quem fica assustada. Ela tem medo que alguém invada sua privacidade e que ela não seja capaz de defender aquilo pelo qual ela é responsável”.

Este tipo de assunto está bem distante das preocupações normais da escultura, que se impõe à cultura de uma maneira “masculina”. O que Bourgeois monta é um imaginário surrealista de pequenas ameaças, defesas, covis, ventres, quase incipientes agrupamentos de formas. Sua obra é às vezes agressiva e patética, carregada de sexo e fisicamente desajeitada, tensa e obtusa. Ela emprega um imaginário do encontro para tornar concreta uma sensação de solidão quase inevitável. Em resumo, é fisicamente, mesmo que nem sempre formalmente, um rico material e deve ser motivo de alegria que o Museu de Arte Moderna e Deborah Wye, Curadora Associada, o tenham promovido em uma mostra tão minuciosa.

Os trabalhos mais rigorosos e satisfatórios de Bourgeois tendem a ser aqueles baseados tanto em totens “primitivos” ou formas naturais: pólipos corais, seios, pencas de brotos e cilindros, com suas pontas truncadas e inclinadas em ângulos diferentes, grudados numa plataforma. Eles dão uma impressão de vivacidade pré-conscinte – natureza em marcha. Sua aura se torna um pouco mais sinistra numa grande escultura, Femme-maison ’81, feita em mármore preto: um cacho ondulado de longas formas tubulares, mais para o frondoso que para o fálico, roçando e se empurrando entre si com uma energia irresistível, peculiar, que se empinam em torno de um platô onde repousa um pequeno abrigo, esquematicamente talhado.

Ao mesmo tempo, a imaginação de Bourgeois tem um lado desagradável, nojento, como devem ser os atos reais de exorcismo. As fantasias que sua arte expele dentro do casto espaço da galeria tem tanto a ver com incesto e canibalismo como com as satisfações estéticas mais costumeiras do MoMA. A mais vívida delas, e a mais crua, é um tipo de gruta cheia de estalactites marrons pendulares, intumescidas e com formato de seios. Uma banal lâmpada vermelha brinca sobre elas; no meio há uma mesa, talvez um altar de sacrifícios, e por toda a caverna estão esparramados junto com o que parecem ser pedaços mumificados de carne. Eles não podem ser identificados como humanos; no máximo, eles se assemelham a pequenas pernas de cordeiro. Mas eles fazem pensar na temível caverna do Cíclope Polifemo da Odisseia, coberto de fragmentos de indizíveis ceias. O título é A destruição do pai, 1974.

“É uma peça muito assassina”, aponta Bourgeois no catálogo, com certa insuficiência de expressão, “um impulso que aflora quando se está sob muita pressão e se volta contra aqueles que mais se ama”. O mesmo imaginário aparece de novo, de uma maneira levemente mais distanciada, em seu ambiente de grande sala, Confrontations, 1978. Aqui o espectador é excluído da mesa central, que está coberta de seios, restos de comida cobertos de látex e outros bocados, por um círculo de caixas de madeira. Estas afinam para o alto, como versões dos dolmens em lugares de rituais arcaicos, instigam a serem lidas como efígies abstratas da figura humana: um círculo de observadores, suas costas a esconder a audiência, absorvida em um obscuro ritual.




Alguns talvez possam achar esse imaginário não apenas arcaico, mas decididamente demodê: invocações do ctônico e do primitivo padronizaram a trajetória de modernistas durante três quartos de um século. Bourgeois, todavia, utiliza suas citações primitivas para ultrapassar os convencionais agrupamentos da história da arte moderna – o emaranhado de ismos que nos diz tão pouco sobre o real sentido da arte – e para remexer dolorosamente entre as camadas de sua própria composição. Que equivalentes pode a arte encontrar para pintar a feminilidade desde dentro, distinto das convenções costumeiras de olhá-la desde fora através dos olhos de outro sexo? O que pode ela dizer sobre interioridade, fecundidade, vulnerabilidade, repressão ou ressentimento? Como pode ela proporcionar um substrato diferente de sentidos para o corpo? É para tais questões que a escultura de Bourgeois se volta, nem sempre com êxito mas com uma consistência e uma intensidade chocantes. Algumas delas parecem “não-heróicas”, deficientes por completo, até mesmo incoerentes: mas estes são subprodutos de seu esforço para descrever, por meios surrealistas, experiências que são automaticamente excluídas da arte heroica. Por tais operações, Bourgeois pode ser o sobrenome errado, mas é bom ver uma tal artista conseguindo seu tributo, finalmente.

Robert Hughes




(Revista Time, 22/11/1982, pág. 58; tradução de Bento Itamar Borges, em 1982, com revisão em 2022 – sendo que há leves discrepâncias entre o texto originalmente impresso na revista e o disponível hoje na internet, mas apenas no tangente a títulos de obras de arte citadas no artigo.)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Um comentário:

Miguela Rabelo disse...

Sua obra é visceral em todos apectos, sejam plásticos e poéticos. Lembro de conhecê-la na faculdade e foi um dos meus referenciais teóricos do meu TCC. Em específico um dorso que se estirava como um arco. Era um trabalho bem realista que percebi certa co-relação com minhas peças de cerâmica que se contorciam. Com certeza sua obra traz grande importância e relevância em ser única e estar a margem das tendências usuais deste universo. Parabéns pela tradução necessária, viabilizando assim esse artigo tão rico.