terça-feira, 5 de novembro de 2024

CELEUTA BATISTA ALVES ( 1953 - 2024)

 

Neste blog, desde 2010, já publiquei algumas homenagens póstumas a colegas de ofício, que foram professores e colegas de trabalho, relevantes para minha formação e nosso trabalho docente. Eu nunca precisei justificar minhas crônicas de despedidas, nem meu grau de parentesco nessas circunstâncias derradeiras e eventualmente melancólicas.

Venho agora prestar um tributo a essa pessoa tão presente na esfera acadêmica de Uberlândia em uma metade de século – que se encerrou ao final desse outubro cinza para nós, quando também perdemos o colega Tolendal e a querida Marluce, secretária-fundadora e presença lúcida e bondosa no sindicato dos professores, a ADUFU.

A propósito, foi diante da sede de nosso sindicato que vi de relance Celeuta pela última vez. Era uma noite de junho do ano passado, logo após um evento que reuniu velhos colegas em boa conversa durante um lançamento de livro. Celeuta ia em direção ao campus e apenas vi seu vulto esguio driblando dois carros estacionados, como se estivesse com pressa. Hoje penso que teria sido bom se ela tivesse entrado lá para comer uns salgados, tomar um guaraná e trocar umas ideias.

Celeuta aparece em um blog de filosofia (do cerrado) também pelo que ela poderia ter sido, em termos de escaninhos do saber acadêmico. Ela, tão famosa por sua capacidade de entender e ensinar difíceis conteúdos daquelas ciências antes alocadas no “CETEC”, poderia ter brilhado também nessa conversa sofisticada que não tem um quê exclusivo, mas sim um como, um modo de se expressar. E eu admito que ela ilustrava bem uma definição que adoto e prezo para “método”: é nada mais que o uso livre e amplo da inteligência.

Enquanto trago o rascunho para esta versão prestes a postar, fico sabendo de um colega de departamento que, sim, ela passou também pela filosofia. Não só deu o ar de sua graça em algum debate ou tomou vinho com calouros em nossa “Ágora”; Celeuta frequentou disciplinas da graduação em filosofia, como aluna especial. E isso decerto ocorreu enquanto ela cursava uma das engenharias da UFU.

Se ela viveu com pouco e, na verdade, veio a padecer na penúria, isso não depõe contra sua inteligência. Outros grandes intelectuais faliram, no que prestigiassem uma definição da figura-filósofo deixada por Derrida ou Deleuze: filósofo é um sujeito que quebra a cara...

Ora, eu estava longe de Uberlândia nesse dia 31, quando tentava falar de outro assunto com nossa colega Yara – eu excluo deliberadamente a tecla do i maiúsculo, que gera ambiguidade – e eis que de repente ela digita curta mensagem sobre uma mulher vitimada por atropelamento. E quis confirmar se eu conhecia “Cesta”. Tive que interpretar logo o erro do processador de texto do celular, cujo algoritmo ignora nomes raros. E arrepiei ao pensar que fosse aquela vizinha de infância e parceira de destinos cruzados. A viagem – como diria o maluco beleza.  

E me apressei em pedir que Yara, no velório, cochichasse ao ouvido de Celeuta ou perto das flores: “O Bento diz que você não deve nada a ele. E ele não guarda nenhum ressentimento; vai em paz”. Mas, antes dos negócios, voltemos à infância.

Por volta dos quatro ou cinco eu aprendi a dizer “poeta” e de vez em quando eu podia ver um deles a conversar com meu pai e meu tio, em Tupaciguara. O pai de Celeuta tinha esse apelido: Poeta. Éramos vizinhos no bairro chamado Rua Goiana. Muitos anos depois, início dos anos 80, conversei com Celeuta sobre nossas origens comuns e isso viria a mexer um pouco com minha imaginação. Esse Poeta, segundo nos contava Celeuta, tinha o dom da oratória e havia esboçado uma reformulação da mitologia grega, que ele traduziria para figuras e estórias das culturas e dos povos africanos. Não sei se ficou algum registro, mas a simples ideia desse projeto já vale para imaginar um ambiente doméstico estimulante para algo mais que o cálculo: pensar o diferente, na contramão.

Além disso, o pai de Celeuta teria tido uma queda e talvez alguma militância no Partido Comunista. E isso mexia com minha fantasia, pois embora meu pai e meu tio fossem pacatos católicos, haviam trabalhado nas lavouras de arroz na região de Centralina e Canápolis. Lá onde aconteceram os atos de protestos e sabotagem contra a “Fazenda dos ingleses”. E um dos líderes era primo de meu pai, recolhido a cela solitária em Uberaba.

Para dar um salto e aliviar um pouco esta singela recordação, quero lembrar que houve uma época em que Celeuta morou por uns meses em nossa casa, no bairro Saraiva. Ela não tinha onde ficar, naquele período. E levou consigo sua cachorrinha Tulipa, muito esperta e querida por meus filhos. E nos limitamos a rir, quando Tulipa quis fazer bonito e veio mostrar o resultado de sua “caçada” no lote anexo. Veio toda alegre exibir entre os dentes o molambo de um pobre franguinho, daqueles que vinham tingidos de cor rosa, no dia das crianças, recém-saídos do ovo.

Daquelas semanas ou meses de convivência, ficaram uma frase e uma postura premonitória. Celeuta conversava com Tulipa de modo muito carinhoso, limitando suas broncas a um refrão: “Não entra numas, Tulipa...” E já deixava claro que curtia mais os animais que os humanos, por merecimento daqueles.

Deve ser desse período, por volta de 1989, uma foto muito importante, que foi localizada ontem no acervo dos meninos. Nossa hóspede Celeuta, minha ex-esposa Kássia, Taiguara e eu. Depois do show de nosso querido cantor, fomos ao camarim para elogiar a música e tietar o artista. E nisso fomos fotografados por um jornalista fotográfico. Quatro rostos sorridentes após belas baladas sobre utopias e guarânias guaranis.

Não cabe a mim, nem a este elogio fúnebre, falar de aspectos da saúde (mental) de nossa colega e muito menos estabelecer conexões sobre a condição de vida da mãe dela, que uma vez visitamos no bairro Tocantins. Pois, como disse um filósofo africano acima citado: “isto aqui não é um boletim médico”. E preciso falar de um episódio um tanto difícil, embora revelador.

Fui fiador de Celeuta, na imobiliária Rotina. Ela alugou uma casa com grande área para plantio. Nessa época, ela morava com um rapaz e ambos tinham planos para o terreno na rua Carioca, antes da construção de uma escola infantil por ali e da especulação imobiliária naquelas terras próximas ao rio. Ora, depois de algum tempo, fui acionado para pagar dívidas acumuladas que se referiam ao aluguel, DMAE, Cemig, juros, custas judiciais... Tive que arcar com uma despesa inesperada e crescente. Durante dois anos eu ia até um escritório de advogados na rua 16, Santa Mônica, onde deixava uma boa parte de meu salário. No total, perdi ali seis meses de meu salário integral de professor.

Ela foi despejada, a pedido do dono do imóvel, mas eu tive que acompanhar a triste cena, com presença de policiais, zoonose e tal. Provisoriamente, a imobiliária guardou alguns móveis de Celeuta em uma garagem na sede da empresa. Eu nunca pensei em acionar a colega para recuperar parte do prejuízo, nem falei disso a estranhos, apesar de ouvir insinuações maldosas sobre minha ingenuidade e quanto ao perfil da inquilina. E, de fato, repito agora que não guardei rancor. E encerro esta nota, com uma avalição sobre isso de acreditar. Acreditar em pessoas e nos sonhos delas e nossos.

Em minhas aulas de Filosofia da Ciência, gostava de uns textos iniciais em que se estabelecia uma comparação entre ciência e senso-comum. Embora um certo Gunnar Myrdal, citado por Rubem Alves, entendesse acertadamente que a ciência é apenas o senso-comum organizado e refinado... sentíamos que faltava “sistematização” ao campo da não-ciência ou pré-ciência. Ora, por minha dolorosa experiência, posso afirmar que erramos não ao seguir as cartas e os signos do zodíaco, mas justamente por duvidar de suas projeções. Nesse mundo de contingências, somos incapazes de atribuir valor de verdade a simples enunciados com verbo no futuro ou mesmo sobre o conteúdo de “outras mentes”. Diante desses gaps, saltamos, arriscamos.

Em 1988, uma aluna de nosso primeiro curso de especialização em Filosofia examinou os traços de meu rosto – não as linhas da mão – e disse: “você não terá lucro com negócios ligados à terra”. E eis que eu perdi, poucos anos depois, a casa em que morava a família, um lote, um veículo... e mais uns longos anos de trabalho. Ou seja, eu me igualei com Celeuta, que também esperava “colher com a mão a pimenta e o sal”, cercados de livros, carneiros e cabras. Parafraseando a figura aqui lembrada, uma semana depois de seu falecimento: nós entramos numas de Zé Rodrix, Thoreau e Hesíodo...regredindo ao caos original.

O filósofo que eu mais li, o alemão Habermas, escreveu um texto para comemorar os 70 anos de Marcuse, no agitado ano 1968. O título na tradução francesa torceu o original para “anti-hommage” e de fato o autor queria mais era aproveitar a ocasião para fazer avançar a teoria crítica, como devia esperar o velho guru da juventude engajada.

Eu fico imaginando, como fazem todos e todas em torno da memória de Celeuta, que ela não aprovaria nem mesmo o termo “homenagem”, que eu evitei até aqui. Todavia, ela há de nos desculpar também pelas flores que enviamos para o velório e pelas rezas que fizemos e faremos através das entidades de nossas crenças e devoções. Pois, afinal, além de estarmos dispostos a “quebrar a cara”, nós também mantemos esses vícios do ofício: o cachimbo que nos entorta a boca e a especulação que sugere o éter e a transcendência.

Celeuta nos deixou com dezenas de gatos magros e baitas dúvidas, neste mundo opaco, ingrato e cruel. Mas ela vive em nossas lembranças e decerto já está contando causos para a Mãe lá em cima. E ouvindo os versos do Pai, recém traduzidos para o latim, como parte do protocolo diplomático do além.

 


"...Lá colhi uma estrela pra te trazer.

Bebe o brilho dela até entender."

(Teu sonho não acabou - Taiguara)

sábado, 25 de maio de 2024

FILÓSOFO MEIA-OITO LONGE DAS BARRICADAS

 




2024 – ...na cola de outro Moisés, agora

 

 

FILOSOFIAS DA VIDA VIVIDA:  Todos os vivos estão no grupo de risco. Viver é arriscado. Mas depois de uma epidemia, tenho que admitir: dá medo pegar uma terceira dengue ou bala perdida.  

Quanto tempo quero e espero viver? A pergunta ganha um novo sentido agora, quando entrei no terceiro terço dessa lifetime...

 O que vier é lucro, sobrevida ou, como diz o Julio Cabrera, no seu intrigante livro de ética de cabeza pra bajo: Não-suicidas não são exatamente sobreviventes...

 Aqui está uma tabela para animar os calouros da filosofia. Não se trata de medir QI e nem saber se você joga xadrez ou sabe falar de vinhos. O importante é viver muito.

 E aqui cada um pode se situar em relação aos filósofos que já partiram deste mundo sublunar. O número à esquerda indica o quanto a figura viveu. A cada ano – se Deus lhe der vida e saúde – movimente uma casa para diante. E não cante vitória muito cedo, pois não há game over na eternidade.

 

Km 68. O filósofo do cerrado, que também acredita em geração espontânea, no éter e foi, sim, preceptor de Alexandre, seu irmão mais novo cinco anos, a quem ensinou golpes de capoeira e pesca de lambaris, está em 2024 na boa companhia de...?

 Faça sua própria classificação. Veja como está seu ranking. Não custa nada. E não é o tipo de mensagem que precise passar adiante. Importante é manter-se vivo e tentar chegar aos 103 anos. Para isso, não precisa ser arquiteto de JK, mas sem dúvida a receita passa pela combinação de “verdad y método”.

  ...

29 NOVALISGeorg Philipp… (1772 - 1801)

38 LURIA, Isaac  (1534 - 1572)

40 LASK, Emil [1875-1915]

42 KIERKEGAARD, Søren Aabye - (18131855)

44 WHORF, Benjamin Lee (1897-1941)[1]

46 BAUDELAIRE[2], Charles. [1821- 1867]

47 LUXEMBURGO, Rosa de (1871-1919)

48 BENJAMIN, Walter [1892-1940)

49 AUSTIN - (Lancaster, 1911 - Oxford,  1960)

52 FICHTE, Johann Gottlieb [1762-1814]

53 MERLEAU-PONTY, Maurice (1908 - 1961)

54 DESCARTES, René (1596 - 1650)

56 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (1844 – 1900)

56 WEBER, Max [1864-1920]

58 FOUCAULT, Paul Michel (1926. – 1984)

58 MAQUIAVEL, Nicolau (1469 – 1527)

59 HERDER, Johann Gottfried von (1744 - 1803)

59 DURKHEIM, Emile. [1858-1917]

60 SIMMEL, Georg (1858-1918)

61 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich [1770 – 1831]

62 ARISTÓTELES (384 a.C. - 322 a.C.)

62 WITTGENSTEIN, Ludwig Joseph Johann - (18891951)

63 ADORNO, Theodor (1903 – 1969)

65 BARTHES, Roland (19151980)

65 SAINT-SIMON, Conde de, (17601825)

66 KOJÈVE, ALEXANDRE (1902 - 1968)

68 HUMBOLDT, Friedrich Wilhelm Christian Karl Ferdinand (1767- 1835)

 

 

è 68 FILÓSOFO DO CERRADO (born in 1956, and counting…)

 

69 MAIMÔNIDES, Moisés: (1135-1204)

69 ARENDT, Hannah (1906-1975)

70 BRETON, Andre – (1896 – 1966)

70 LEIBNIZ, Gottfried (1646 - 1716)

71 LUHMANN, Niklas (19271998)

72 BOURDIEU, Pierre: (19302002)

72 SCHOPENHAUER, Arthur (1788 – 1860)

73 BAUER, Bruno (1809-1882)

73 HOLDERLIN – Johann Christian… (1770 – 1843)

73 KOSELLECK, Reinhardt [1923 – 2006]

74 DERRIDA, Jacques (19302004)

74 KUHN, Thomas S. (19221996)

74 LYOTARD, Jean Francois: (1924 —1998

75 PEIRCE, Charles Sanders (1839 - 1914)

75 SARTRE, Jean-Paul... (19051980)

75 ENGELS, Friedrich - (1820 - 1895)

75 MARX, Karl [1818, 1883)

76 RORTY, Richard: (1931 - 2007)

76 VICO, Giambattista (1668 - 1744)

77 FREGE, Friedrich…(1848 - 1925)

78 BACHELARD, Gaston (1884 - 1962)

78 DILTHEY, Wilhelm (18331911)

78 HORKHEIMER, Max (1895 – 1973

79 SCHELLING, Friedrich… [1775-1854]

80 KANT, Immanuel (17241804)

82 FREYER, Hans (1887 - 1969)

82 HAMANN, Richard Henry (1879–1961)

82 BERGSON, Henri-Louis (Paris, 18591941

83 FREUD, SIGMUND (18561939)

84 PIAGET, Jean. (1896  -1980)

84 SWEDENBORG, Emanuel  (1688 – 1772)

85 SCHOLEM, Gerschom: (1897 – 1982)

86 DAVIDSON, Donald Herbert (1917 – 2003)

86 JASPERS, Karl Theodor: (1883 - 1969)

87 HEIDEGGER, Martin [1889 – 1976]

88 DUMÉZIL, GEORGES (18981986)

89 LÉVINAS, Emmanuel: (19061995)

90 HELLER, Agnes (1929-2019)

91 HOBES, Thomas (1588 – 1679)

92 POPPER, Karl R. (19021994)

96 BLANCHOT, MAURICE (1907 -- 2003)

97 SCHMITT, Carl - (18881985)

100 LÉVI-STRAUSS, Claude (1908-2009)

102 GADAMER, Hans Georg. [1900 – 2002]

 

A tabela ainda está sendo testada. Já passamos da fase de laboratório, com ratos e homens (Of mice and men).  Aos poucos, alguns escritores serão substituídos por filósofos com pedigree, antes que alguém entre com recurso. Por razões estéticas, seria bom dispormos de uma tabela que exibisse pelo menos um filósofo para cada idade. E quem souber de um pensador, tipo James Dean, que tenha vivido rápido e morrido cedo, favor enviar comentário. Hasta la vista, porquinho Babe.

 

LIVROS QUE ANDEI LENDO EM 2023:

 

O Seridó e os Votos de Porteira batida (Cicero JAS Neto)

Coronelismo no Nordeste (Cicero tb, ambos resenhados)

Tudo e mais alguma coisa (Chacal)

Lolita do Nabokov (em duas etapas, com estudo)

No coração das trevas (Zé Conrado)

O corvo, do Poe, ilustrado por outro louco do gótico

Cenas urbanas e o amor, Gilberto Neves

Memórias entrelaçadas, Antônio Almeida (resenha)

Estações de Mig – Poe  meus

Injustiça social / identitarismo (Pluckrose e Lindsay)

Solidão e companhia; biografia de Gabo (Silvana Paternostro)

O fio da memória de um fio dos padre (JTS)

Histórias que não aguento mais contar (JTS)



BELEZAS DA SECA

Descendo a serra da Confusão, 

para pescar no Rio Paranaíba

abril deste ano 2024

 



[1] Acrescento aqui em 2018 o Whorf, seguidor de Sapir, que não é bem um filósofo. Mas quem o é? Esse era um engenheiro de segurança que visitava indígenas, que falavam outra língua e...viviam em outro mundo, etc. Ora, isso interessa à filosofia. E Wittgenstein também era engenheiro...

[2] Sempre me lembro aqui do Bode Orellana, criado por Henfil. O desenhista viveu só 44 anos, mas o personagem das tiras, que comia livros, sobreviveu ao animal de estimação, falecido na casa do cantor Elomar em 1976. Decerto comeu umas páginas de Sidney Sheldon.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

É LÓGICO QUE NEWTON DA COSTA MERECE UMA NOTA PÓSTUMA

 

O Filósofo do Cerrado não mantém um arquivo com esboços de discursos fúnebres para filósofos com idade acima da média nacional. Sucede que vem ele registrando algumas anedotas e ideias, desde 2015, que já lhe serviram nessas circunstâncias últimas de alguns conhecidos e merecedores de homenagens. Claro que para alguns outros poderei, como fez Habermas, compor uma rápida “anti-hommage”. E isto não é uma ameaça, nem uma gota de maldade diária do elixir da auto-ajuda com excesso de sinceridade.



Copiaram? Ou querem levar a lousa para casa? 

 

Na verdade, só achei em minha gaveta duas notas ready made sobre Professor Newton da Costa. Ei-las:

  

“483 Sobre tarefas difíceis. Quem se habilita? Newton da Costa, depois de conferência memorável respondeu perguntas, inclusive aquelas inevitáveis, fora de calibre. Alguém da plateia de engenheiros pediu uma canja sobre um certo teorema de Gödel. Poderia explicar para nós? Sim, respondeu o grande lógico, eu poderia falar desse teorema, mas teria que largar tudo em São Paulo e me mudar para cá, pois só para montar o problema eu levaria uns três anos, no mínimo. Fuóin..”.

“2192 Um periódico restrito a um pequeno grupo de especialistas em dízimas periódicas, que só vinha a público lá de vez em quando.” [Da Costa se referia a uma revista dedicada à nova lógica que ele vinha desenvolvendo e que só teria uma dúzia de leitores mundo afora. Bastava um mimeógrafo a álcool, envelopes aéreos e alguns carteiros a pé.]

 

Adendo às anedotas, onde apelo para a memória orgânico-espiritual, na qual podem confiar: O famoso lógico esteve em Uberlândia para uma palestra por entre 1990 e 94, creio eu. E nem foi a convite da filosofia, não. Os matemáticos e engenheiros teriam interesse na conversa com o convidado. Mas creio que o “discurso motivacional” de Costa coube mais e melhor a nossos alunos de filosofia, pois, sempre com bom humor, o palestrante procurou mostrar novas perspectivas – não para físicos e engenheiros – para filósofos, como de fato já ocorria em nossa siderúrgica Villares e na... NASA.

Sim, confirmou ele: essa agência espacial colocava filósofos na mesa de reunião para criação em ritmo de brain-storm. E de repente era justamente um filósofo que vinha com uma ideia maluca do tipo “vamos chegar a Marte nadando”. E, no caso da nossa empresa de ferro gusa e aços, fez o ilustre palestrante  uma caricatura de nossa figura, na contramão: “E não pensem vocês naquele barbudinho de calças jeans sujas e rasgadas. Não; esse filósofo empregado da Villares chega de terno Armani e pasta 007...”

 

Lógica, racionalidade e superstição. Sim, parece título de um TCC de graduação, mas temos que investir nas contradições e nos enunciados sem valor de verdade definido. Antes de falar dos números de Newton (e do nome), me ocorre citar outro campeão da racionalidade, Jürgen Habermas. Surpreendeu-nos ele – em uma entrevista comum – ao dizer que a história da Alemanha tem um certo azar com o número 9. E exemplificou com os anos 1949, 1989... embora tenha se esquecido de que nascera em 29.

 

Os números. Por que será que eu me demorei uma semana para preparar esta homenagem aqui? Sucede que era meu aniversário no dia em que Professor Newton faleceu – quando, sem saber do óbito, evitei notícias e dedicava-me à cerveja. Pois bem: o nosso grande lógico nasceu em 16 de setembro (1929) e morreu nesse último 16 de abril. E agora descubro, ao procurar entender a árvore genealógica do famoso paranaense, que Professor Haroldo, irmão de Newton, também nasceu em outro 16 de setembro (1931).

A árvore. Newton Carneiro Affonso da Costa é filho de Sylvia Carneiro Affonso da Costa e de Dimas do Cahy Affonso da Costa. E tenho que me contentar com isso, pois cismei que o nosso bem sucedido lógico fosse descendente do aguerrido positivista paranaense David Antônio da Silva Carneiro. Conheci a vetusta figura em 1990, meses antes de sua morte, em evento bastante concorrido sobre a herança de Auguste Comte. Estive em mesa redonda com ninguém menos que Leonidas Hegenberg, outro monstrinho sagrado – da filosofia da ciência, no caso – mas isso é outra história.

 

O nome. Me agrada um duplo princípio hermenêutico de auto-compreensão, embora sem poder dizer a fonte dessa bio-ética num bom sentido: tornar-se aquilo que se é e  realizar seu próprio nome próprio. Pois, sim, o Professor da Costa mesmo conta como encasquetou desde criancinha que tinha que fazer jus ao outro Newton, que lançou um disco colorido e deu origem a outras anedotas com maçãs caindo. E provocou uma baita troca de paradigma, como só outros dois conseguiram tal proeza na física, diria Thomas S. Kuhn.

 

O que eu tenho a ver com isso? Ora, quem acha que eu não escrevi sobre  – e eventualmente contra – alguma lógica, que leia minha dissertação de mestrado, quase atolando na filosofia analítica da linguagem. Grátis na rede, em PDF ou em papel na EDUFU.

De tabela, eu me encarreguei de buscar um parecerista para avaliar a tese de doutorado de nosso colega recém aposentado, Professor Dr. Marcio Chaves-Tannús, que veio a ser aprovada e publicada em 1996, também pela EDUFU e já na segunda edição: A Ética de Pedro Abelardo. Um modelo medieval de aplicação da lógica à moral. O orientador dessa tese sobre o sofrido monge – ou seja, algo da obra acadêmica dele, desde um bem recortado enfoque e tal – foi o Professor Newton da Costa, na USP, à altura do início da década de 1990.

Agora posso revelar: o parecerista, talvez recomendado pelo Professor Alberto Deboni, foi o Professor Celestino Pires, da UnB. E não procurem no Lattes, pois não consta. Está lá um certo “Vicente Celestino Pires”, que não cantava ópera em circo mambembe e é da área agrícola. Ou seja, há limites para inquirições de genealogia e sociogramas.

 

Esgotei o assunto. E não se contentem com a Wikipedia – da qual, aliás, sou um humilde contribuinte, doador de grana para manutenção – pois achei duas boas entrevistas com o nosso raro “lógico paraconsistente” em canais acadêmicos qualificados, de 2012 e 2023. Não percam a curiosidade, caros e queridas que visitam este blog renitente:

 

https://revistas.ufpr.br/direito/article/viewFile/31494/20095

https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2023/02/06/newton-alem-de-newton

 

Agradeço a visita.

Não precisam dar likes explícitos. 

Nem dislikes tácitos.

Nem ambos e/ou algo mais.  

 

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

ME CHAMEM PARA ESSE DEBATE

 


CAPA BEM BOLADA - SHOW DE SEMIOLOGIA


Se eu digo a alunos na sala de aula, em uma tarde de calor: "não pensem em um SORVETE agora!", é altamente provável que a imagem do ice cream virá a mente de muitos ou, talvez, todos. Mas, a imagem sensorial sugerida e provocada pela aparente proibição no enunciado ainda não é exatamente "pensar". Pelo menos não no sentido de "refletir", "ponderar", etc. 

Assim também, para prestigiar outro ramo em alta dentre as ciências da linguagem, a pragmática, o slogan "Beba cerveja Fulanabier Lager Malte gelada!" inclui a parte básica desse sintagma, com "Beba cerveja!", curto e grosso. Essa ordem ou sugestão funciona, de forma que as cervejas populares que não investem em publicidade se beneficiam da divulgação grátis. E quem estiver com pouco dinheiro, no fim de um dia de trabalho ou buscando emprego vai pedir ao dono do bar na vila, tipo "me dá uma latinha de dois pilas". 

A capa desse livro é muito rica e poderia render uma aula. Em meu exemplar, que não fotografei, consta ainda o adesivo com o preço: 15,00 - quinze reais, ou seja, três litros de gasolina ou seis latinhas de kaiser al tiempo. Então, por que alguém precisa pagar até 45,00 na Amazon? Preguiça, mania, moda... e outros aspectos de nossa sociedade atual, para os quais nem sempre aplicamos o critério de justo/injusto. Pois nos acostumamos com a exploração e damos por natural que os ricos nos dominem inclusive sob o novíssimo fetiche da tecnologia, que esconde o consumismo. 

O título do livro propões revelar a injustiça que se esconde debaixo de alguma proposta de implantação e realização da justiça social, o que não se compreende de forma rápida e intuitiva, devido a essa aplicação não usual de "social". A ilustração da capa atrai o potencial leitor que percorre as bancas no corredor do shopping com ar condicionado: capitalismo gera desigualdade, poder ao proletariado, transporte grátis... Opa! vou comprar e ler! 

As imagens de pessoas, todavia, montam uma amostra bastante estereotipada de um recorte sociológico, com quatro rostos de jovens não-brancos em gestos expressivos, punhos cerrados. Além da colagem sobreposta, "suja" como paredes de cidade grande, cheias de cartazes vencidos, onde se destaca a cor vermelha, que também foi usada no "in" de injustiça. E a mancha da metade superior da capa se reforça em fundo negro para a metade de baixo onde estão os outros termos do título. 

Quem der o passo seguinte, ao segurar o obejto-livro mais perto dos olhos lerá o subtítulo: "Desmontando mentiras e teorias absurdas sobre raça, gênero e identidade - e o males autoritários do politicamente correto". Hora de virar a mercadoria-livro para conferir a contracapa com texto impresso meio torto, que se abre com uma pergunta: "Afinal, por quem os justiceiros sociais estão  realmente lutando?" O texto com sinopse é apresentado em forma de cartaz para passeata ou muro e é sustentado por duas mãos de pessoa negra, que parece magra-subnutrida, cujo rosto está coberto ou escondido pelo mesmo cartaz e pelas intenções de autores, editores, artistas gráficos. 

A orelhas trazem declarações de Helen e James, bem como suas credenciais e fotos: jovens, brancos, bem nutridos... e eis que já está o quase-comprador lançando hipóteses sobre a falta de neutralidade deles e de uma terceira pessoa, Rebecca, que nos fez o favor de resumir o livro original, Teorias cínicas

Sim, a indústria editorial está em campanha de divulgação, ao simplificar o texto e expandir o leque de leitores curiosos, sem tempo ou com pressa. E eu sou um desses e de fato comprei o livro. Já  o li e rabisquei e ri e xinguei, deu murros na mesa... Eu precisava me informar sobre essas ondas de estudos e ativismo dos últimos vinte anos, sobretudo  porque me afastei da academia e da cena urbana há dez anos. Não quero apenas ficar antenado com o novo jargão, por razões de ética e etiqueta. 

Mas... não. Não vou escrever uma resenha aqui. O que espero é poder montar uma mesa do sindicato dos professores na universidade onde trabalhei... Entender esses novos fenômenos, as novas pautas e poder contribuir com uma parte do nó górdio (ops!), no enrosco do pós-modernismo com diversas fantasias do liberalismo. 

Minha fala seria ou será algo como uma "resenha ao vivo", e creio que vou gastar boa parte de meu tempo de fala com constantes ressalvas sobre como não quero ser confundido com os autores e suas posturas. E espero manter o bom humor, virtude que apreciei em recente leitura de um livro instigante de Frantz Fanon. 




[Mural fotografado por mim na ilha Dominica em 2017. 

"Los cinco cubanos" ficaram injustamente presos nos EUA, de 1998 a 2014.] 


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Dois livros de Antônio Almeida – notícias da militância sindical

 



 

Eu tive a subida honra, como diria Odorico Paraguaçu, de ser convidado para o lançamento do livro Experiências políticas no ABC Paulista, mormentemente porque eu já não estava na diretoria de nosso sindicato de professores da UFU e não sou historiador. Então, fui prestigiado pelo autor, que tanto admiro e a quem fui e sou grato.

O texto foi originalmente a tese de doutorado dele, defendida em 1996, USP. O título para a banca tinha sido Lutas, organização coletiva e cotidiano: cultura e política dos trabalhadores do ABC Paulista (1930-1980).



O lançamento, com debate, foi um dia de encontro de colegas de áreas teóricas diversas e também de diferentes setores do movimento popular e sindical em Uberlândia e região. A audiência era parelha com o teor do livro – mesmos sujeitos históricos das lutas e esperanças.

Hoje vejo que me preparei bem e demoradamente para o evento, pois rabisquei o livro todo e tomei notas nas últimas páginas em branco, algumas delas seguidas de pontos de exclamação. Temas como: trabalho e trabalhadores contra a ideologia do fim do trabalho; classe (Luta), mas não tanto luta de classes; direita / esquerda – contradições e conflitos; resistência!; Alegria – esperança; solidariedade! e... avanços obtidos.

O autor “ALMEIDA, Antônio de” – que antes e sempre foi para nós “o professor Antônio”, da História e da Adufu -   foi muito generoso ao autografar meu exemplar: “Amigo e companheiro de lutas Bento... Obrigado pelas jornadas e pelo entusiasmo na esperança de outra realidade mais justa. Antônio.”

 

El tiempo pasa... nos vamos poniendo viejos...” e de barbas brancas, de molho. Obrigado, Mercedes! E eis que, treze anos depois, compareci ao lançamento de um novo livro, cheio de memórias e reflexões do colega Antônio, igualmente aposentado e inventando nobres ocupações como essa de escrever e publicar. Esse evento foi na sede do sindicato, ADUFU, e estive na tranquila condição de ouvinte, na plateia, ao lado de minha filha Maíra.

Muito bom falar com o autor, já no momento relax dos comes e bebes. Legal rever os colegas do movimento sindical e popular. Pois Antônio sempre foi aquele camarada capaz de ajuntar grupos de bases diferentes e convergentes. E podem crer que ele colaborou muito nessa função de aproximar e aconselhar. Mesmo os outros colegas da nossa associação de docentes, os escaldados, os dinossauros, todos íamos até ele quando a barra pesava, quando o angu ameaçava encaroçar. Nosso Antônio era e é também um “conselheiro”. E não se trata apenas de conhecer o regimento e de saber propor táticas; é sobretudo a visão madura e ponderada, firme e compromissada com a grande causa popular-operária.

 

O livro contou com a contribuição de vários colegas, elas e eles, inclusive Raquel Radamés e Vera Puga, que assinam o texto da contracapa. Desta vez, o autor deixou como autógrafo a bela mensagem, extensiva a minha mulher, professora também: “Ao Bento e Wal. Obrigado pela convivência de tantos anos e pelos sonhos sonhados juntos. Antônio”.

 

Eu não pretendo fazer aqui nem ali uma resenha padrão deste novo livro de Antônio. Vou usar uma deixa de suas memórias, para promover um encontro para meia dúzia de colegas e umas duas dúzias de cervejas. Sucede que ele, bom historiador e tarimbado na esfera pública proletária, valoriza o boteco, em suas “memórias romanceadas do coletivo”. Ele criou personagens e inventou para si mesmo um nome e que assim vão se afastando e se reencontrando desde a infância nas lides campesinas até o trabalho acadêmico, passando por oficinas e escritórios. E muitas vezes, em qualquer quadra dessas seis décadas, as ideias se clareavam para a prática com boas doses de cachaça e copos de Brahma com colarinho.



Memórias entrelaçadas: o popular e o erudito nos espaços da universidade. Editora Subsolo, de Uberlândia, 2022. É um ótimo título para um itinerário que me fez lembrar o catatau de Sebastião Nery: A nuvem. O baixinho foi jornalista e assessor político e bicão onipresente, desde sempre. E gosta de repetir: eu estava lá, eu vi. Assim, eu também me vi envolvido pela leitura da crônica de Antônio, na onda do romance histórico, pois o tempo todo eu me via no enredo do colega professor, que saiu da roça e batalhou para estudar e melhorar o país e o mundo. E que acredito na permanência dos livros e na educação política através do debate e da mobilização.

Teremos que conversar num boteco – e faz tempo que não vou, desde que o Kabata fechou – pois este leitor aqui não conseguiria tomar distância para uma recensão acadêmica. A cada página eu ia anotando ou falando comigo mesmo: eu também estava lá, foi assim mesmo, eu me lembro bem... E as datas foram se alinhavando: 1961, 64, 78, 79, 82, 89... Nomes honrados (e também os nojentos) formando duas filas... dois arquivos.

Então, ao boteco. Lá, depois de umas tantas talagadas de Jurubeba Leão do Norte, eu poderei confessar ao autor Antônio onde foi que me emocionei – “com lágrimas nos olhos de cortar cebola...” – e quais parágrafos pulei por falta de estômago e de distanciamento no tempo histórico e biográfico. Foi golpe, foi genocídio. E cansa-nos o longo caminho da reconstrução.

É um livro importante, instigante e... pra manter a rima: intrigante. E não resisto ao bordão: “Esse livro não pode faltar na estante dos verdadeiros intelectuais empenhados e consequentes, etc.” E, de preferência, irão para a estante e para empréstimos a colegas de luta, devidamente amassado e cheio de anotações, sobretudo exclamativas. Uma caderneta de campo com nomes e apelidos. Um protocolo de pesquisa em aberto, entre o cotidiano e a teoria. Uma abordagem interdisciplinar e avessa ao relativismo pós-moderno.

 

Parabéns, colega Antônio de Almeida! De novo... e esperando mais.

 

(Uberlândia, dia de todos os santos, novembro de 2023 (inclusive Santo Antônio, São Bento, Santo Inácio, Santo Dias...)