Neste blog, desde 2010, já
publiquei algumas homenagens póstumas a colegas de ofício, que foram
professores e colegas de trabalho, relevantes para minha formação e nosso trabalho
docente. Eu nunca precisei justificar minhas crônicas de despedidas, nem meu
grau de parentesco nessas circunstâncias derradeiras e eventualmente
melancólicas.
Venho agora prestar um tributo a
essa pessoa tão presente na esfera acadêmica de Uberlândia em uma metade de
século – que se encerrou ao final desse outubro cinza para nós, quando também
perdemos o colega Tolendal e a querida Marluce, secretária-fundadora e presença
lúcida e bondosa no sindicato dos professores, a ADUFU.
A propósito, foi diante da sede
de nosso sindicato que vi de relance Celeuta pela última vez. Era uma noite de
junho do ano passado, logo após um evento que reuniu velhos colegas em boa
conversa durante um lançamento de livro. Celeuta ia em direção ao campus e
apenas vi seu vulto esguio driblando dois carros estacionados, como se
estivesse com pressa. Hoje penso que teria sido bom se ela tivesse entrado lá
para comer uns salgados, tomar um guaraná e trocar umas ideias.
Celeuta aparece em um blog de
filosofia (do cerrado) também pelo que ela poderia ter sido, em termos de
escaninhos do saber acadêmico. Ela, tão famosa por sua capacidade de entender e
ensinar difíceis conteúdos daquelas ciências antes alocadas no “CETEC”, poderia
ter brilhado também nessa conversa sofisticada que não tem um quê exclusivo, mas sim um como, um modo de se expressar. E eu
admito que ela ilustrava bem uma definição que adoto e prezo para “método”: é
nada mais que o uso livre e amplo da inteligência.
Enquanto trago o rascunho para
esta versão prestes a postar, fico sabendo de um colega de departamento que,
sim, ela passou também pela filosofia. Não só deu o ar de sua graça em algum
debate ou tomou vinho com calouros em nossa “Ágora”; Celeuta frequentou
disciplinas da graduação em filosofia, como aluna especial. E isso decerto
ocorreu enquanto ela cursava uma das engenharias da UFU.
Se ela viveu com pouco e, na verdade,
veio a padecer na penúria, isso não depõe contra sua inteligência. Outros
grandes intelectuais faliram, no que prestigiassem uma definição da figura-filósofo
deixada por Derrida ou Deleuze: filósofo é um sujeito que quebra a cara...
Ora, eu estava longe de
Uberlândia nesse dia 31, quando tentava falar de outro assunto com nossa colega
Yara – eu excluo deliberadamente a tecla do i maiúsculo, que gera ambiguidade –
e eis que de repente ela digita curta mensagem sobre uma mulher vitimada por
atropelamento. E quis confirmar se eu conhecia “Cesta”. Tive que interpretar
logo o erro do processador de texto do celular, cujo algoritmo ignora nomes
raros. E arrepiei ao pensar que fosse aquela vizinha de infância e parceira de
destinos cruzados. A viagem – como diria o maluco beleza.
E me apressei em pedir que Yara,
no velório, cochichasse ao ouvido de Celeuta ou perto das flores: “O Bento diz
que você não deve nada a ele. E ele não guarda nenhum ressentimento; vai em
paz”. Mas, antes dos negócios, voltemos à infância.
Por volta dos quatro ou cinco eu
aprendi a dizer “poeta” e de vez em quando eu podia ver um deles a conversar
com meu pai e meu tio, em Tupaciguara. O pai de Celeuta tinha esse apelido:
Poeta. Éramos vizinhos no bairro chamado Rua Goiana. Muitos anos depois, início
dos anos 80, conversei com Celeuta sobre nossas origens comuns e isso viria a
mexer um pouco com minha imaginação. Esse Poeta, segundo nos contava Celeuta,
tinha o dom da oratória e havia esboçado uma reformulação da mitologia grega,
que ele traduziria para figuras e estórias das culturas e dos povos africanos.
Não sei se ficou algum registro, mas a simples ideia desse projeto já vale para
imaginar um ambiente doméstico estimulante para algo mais que o cálculo: pensar
o diferente, na contramão.
Além disso, o pai de Celeuta
teria tido uma queda e talvez alguma militância no Partido Comunista. E isso
mexia com minha fantasia, pois embora meu pai e meu tio fossem pacatos
católicos, haviam trabalhado nas lavouras de arroz na região de Centralina e
Canápolis. Lá onde aconteceram os atos de protestos e sabotagem contra a “Fazenda
dos ingleses”. E um dos líderes era primo de meu pai, recolhido a cela
solitária em Uberaba.
Para dar um salto e aliviar um
pouco esta singela recordação, quero lembrar que houve uma época em que Celeuta
morou por uns meses em nossa casa, no bairro Saraiva. Ela não tinha onde ficar,
naquele período. E levou consigo sua cachorrinha Tulipa, muito esperta e
querida por meus filhos. E nos limitamos a rir, quando Tulipa quis fazer bonito
e veio mostrar o resultado de sua “caçada” no lote anexo. Veio toda alegre
exibir entre os dentes o molambo de um pobre franguinho, daqueles que vinham
tingidos de cor rosa, no dia das crianças, recém-saídos do ovo.
Daquelas semanas ou meses de
convivência, ficaram uma frase e uma postura premonitória. Celeuta conversava com
Tulipa de modo muito carinhoso, limitando suas broncas a um refrão: “Não entra
numas, Tulipa...” E já deixava claro que curtia mais os animais que os humanos,
por merecimento daqueles.
Deve ser desse período, por volta
de 1989, uma foto muito importante, que foi localizada ontem no acervo dos
meninos. Nossa hóspede Celeuta, minha ex-esposa Kássia, Taiguara e eu. Depois
do show de nosso querido cantor, fomos ao camarim para elogiar a música e
tietar o artista. E nisso fomos fotografados por um jornalista fotográfico.
Quatro rostos sorridentes após belas baladas sobre utopias e guarânias
guaranis.
Não cabe a mim, nem a este elogio
fúnebre, falar de aspectos da saúde (mental) de nossa colega e muito menos
estabelecer conexões sobre a condição de vida da mãe dela, que uma vez
visitamos no bairro Tocantins. Pois, como disse um filósofo africano acima
citado: “isto aqui não é um boletim médico”. E preciso falar de um episódio um tanto
difícil, embora revelador.
Fui fiador de Celeuta, na
imobiliária Rotina. Ela alugou uma casa com grande área para plantio. Nessa
época, ela morava com um rapaz e ambos tinham planos para o terreno na rua
Carioca, antes da construção de uma escola infantil por ali e da especulação
imobiliária naquelas terras próximas ao rio. Ora, depois de algum tempo, fui
acionado para pagar dívidas acumuladas que se referiam ao aluguel, DMAE, Cemig,
juros, custas judiciais... Tive que arcar com uma despesa inesperada e
crescente. Durante dois anos eu ia até um escritório de advogados na rua 16,
Santa Mônica, onde deixava uma boa parte de meu salário. No total, perdi ali
seis meses de meu salário integral de professor.
Ela foi despejada, a pedido do
dono do imóvel, mas eu tive que acompanhar a triste cena, com presença de
policiais, zoonose e tal. Provisoriamente, a imobiliária guardou alguns móveis
de Celeuta em uma garagem na sede da empresa. Eu nunca pensei em acionar a colega
para recuperar parte do prejuízo, nem falei disso a estranhos, apesar de ouvir
insinuações maldosas sobre minha ingenuidade e quanto ao perfil da inquilina. E,
de fato, repito agora que não guardei
rancor. E encerro esta nota, com uma avalição sobre isso de acreditar.
Acreditar em pessoas e nos sonhos delas e nossos.
Em minhas aulas de Filosofia da
Ciência, gostava de uns textos iniciais em que se estabelecia uma comparação
entre ciência e senso-comum. Embora um certo Gunnar Myrdal, citado por Rubem
Alves, entendesse acertadamente que a ciência é apenas o senso-comum organizado
e refinado... sentíamos que faltava “sistematização” ao campo da não-ciência ou
pré-ciência. Ora, por minha dolorosa experiência, posso afirmar que erramos não
ao seguir as cartas e os signos do zodíaco, mas justamente por duvidar de suas
projeções. Nesse mundo de contingências, somos incapazes de atribuir valor de
verdade a simples enunciados com verbo no futuro ou mesmo sobre o conteúdo de
“outras mentes”. Diante desses gaps, saltamos, arriscamos.
Em 1988, uma aluna de nosso
primeiro curso de especialização em Filosofia examinou os traços de meu rosto –
não as linhas da mão – e disse: “você não terá lucro com negócios ligados à
terra”. E eis que eu perdi, poucos anos depois, a casa em que morava a família,
um lote, um veículo... e mais uns longos anos de trabalho. Ou seja, eu me igualei
com Celeuta, que também esperava “colher com a mão a pimenta e o sal”, cercados
de livros, carneiros e cabras. Parafraseando a figura aqui lembrada, uma semana
depois de seu falecimento: nós entramos numas de Zé Rodrix, Thoreau e
Hesíodo...regredindo ao caos original.
O filósofo que eu mais li, o
alemão Habermas, escreveu um texto para comemorar os 70 anos de Marcuse, no
agitado ano 1968. O título na tradução francesa torceu o original para “anti-hommage” e de fato o autor queria
mais era aproveitar a ocasião para fazer avançar a teoria crítica, como devia
esperar o velho guru da juventude engajada.
Eu fico imaginando, como fazem
todos e todas em torno da memória de Celeuta, que ela não aprovaria nem mesmo o
termo “homenagem”, que eu evitei até
aqui. Todavia, ela há de nos desculpar também pelas flores que enviamos para o
velório e pelas rezas que fizemos e faremos através das entidades de nossas
crenças e devoções. Pois, afinal, além de estarmos dispostos a “quebrar a
cara”, nós também mantemos esses vícios do ofício: o cachimbo que nos entorta a
boca e a especulação que sugere o éter e a transcendência.
Celeuta nos deixou com dezenas de
gatos magros e baitas dúvidas, neste mundo opaco, ingrato e cruel. Mas ela vive em nossas lembranças e decerto já
está contando causos para a Mãe lá em cima. E ouvindo os versos do Pai, recém traduzidos
para o latim, como parte do protocolo diplomático do além.